Abstração, arte popular e concreticidade histórica
Priscila Figueiredo
Faculade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo
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Em Mário de Andrade a assimilação das vanguardas europeias logo se fez acompanhar de pesquisas no campo da criação popular, em que o escritor deparava com estruturas também abertas, que se distinguiam mais pela fluidez que pela fixidez de sentido, mais pelo caráter evanescente e alógico de suas formulações que pelo caráter determinado e lógico. O Expressionismo alemão, cujo estudo Mário fazia paralelamente à sua elaboração de um conceito de nacionalismo, teria lhe fornecido sobretudo a categoria estética da deformação, para ele central na arte moderna. Como esclarece Gilda de Mello e Souza: “Referido pela primeira vez n’A escrava que não é Isaura, o Expressionismo será conceituado posteriormente na esteira de Worringer, não como corrente estética alemã, vigente num determinado período histórico, mas como a característica geral da arte alemã e a tendência dominante na arte moderna — incluindo os aspectos mais vigorosos do Futurismo, do Cubismo e das vanguardas alemãs do início do século. Suas características principais são a preocupação social acentuada e o uso sistemático da deformação”.[1] A deformação foi estudada a fundo por Mário, especialmente como conceito próprio a uma arte não-clássica, e o teria guiado, por exemplo, na compreensão da arte barroc;o-popular de Aleijadinho e do Padre Jesuíno de Monte Carmelo, por exemplo. Por meio da cultura e da língua germânica, Mário ainda pretendeu se proteger da onipresença da cultura francesa nas letras e artes nacionais, cultura que ele considerava cosmopolita e definida demais para o Brasil.
Tal disposição está na base de sua crítica ao Parnasianismo, por exemplo, como aparece em artigo de 1938: “Dentro da sublime tactilidade com que a palavra nos atinge, será possível, de modo grosseiro, distinguir dois aspectos diversos: a crueza de sentido universal, que lhe dá uma objetividade escultórica, e seu mistério, que lhe dá uma essencialidade musical […]. A possível impassibilidade parnasiana foi especialmente uma desconsideração à fluidez riquíssima da palavra, suas sugestões, suas associações, sua música interior e vagueza de sentido pessoal. Pregaram e realizaram o emprego da palavra exata, a palavra em seu valor verbal, a palavra concebida como um universo de seu próprio sentido, enfim, a palavra escultoricamente concebida”.[2]
Em Macunaíma, romance-rapsódia de 1928, tudo, a começar pelos nomes próprios, como Venceslau Pietro Pietra, ambíguo e plurívoco, parece fugir à fixidez semântica e à univocidade lingüística, como já notou Gilda de Mello e Souza.[3] As palavras têm seu valor musical e seu, digamos, valor de associação aumentado. O autor intensificou, em todos os níveis do romance, características que ele identificara e seguiria identificando como marcantes de várias manifestações da arte popular, como a tendência ao inacabamento, à fragmentação formal, à vagueza musical de sentido, tendências que agora vinham à tona com a explosão das formas tradicionais operada pela “arte nova” e por uma reposição das explicações do mundo fundadas no mito. No âmbito da linguagem, também aqui se dá aquela “ressurreição da palavra” que Chklovsky identificou na prática poética de vanguarda e de seu uso muita vezes como “material fonético empírico”, ou “a palavra poética não apenas como uma unidade gramatical, mas disponível no que veio a ser chamado de ‘imagem e som transracionais’”, libertos de sua carga semântica fixada.[4] Ora, o que parece ter feito nosso Autor? Teria agudizado processos já existentes na arte popular brasileira, mas não só, já que, mesmo na lírica culta, por exemplo, constatara a referida propensão à vagueza de sentido nas palavras.
Diversas vezes Mário de Andrade comparou a poesia popular à poesia moderna e insistiu que especialmente sua dissociação semântica e força de sugestão não só distinguiam a melhor poesia romântica nacional como deveriam servir de modelo ainda aos poetas cultos, pois formavam um elemento inequivocamente próprio num país “recém nascido da Arte”. É dessa perspectiva que criticaria, em 1939, a produção do mais famoso condoreiro: “É interessante qualificar de burguesa a coletividade que interessava a Castro Alves. O povo e suas expressões artísticas usam e abusam da fluidez de sentido das palavras. O povo se adapta perfeitamente a frases, estrofes, orações totalmente incompreensíveis. O sentido como o pensamento lógico são expressões de burguesice. A burguesia renega as vaguezas, as evanescências; é anti-musical por excelência, porque não há como a semicultura pra insular a compreensão na terra curta do pensamento lógico”.[5] Também sua importante distinção entre tema e assunto faz destes verdadeiras categorias estéticas, com o que verifica o coeficiente de genuinidade lírica na poesia erudita.
Numa das “lições” de Vida do cantador, Mário também testemunha a facilidade, mencionada no artigo sobre Castro Alves, com que o povo acolhe “frases, estrofes, orações totalmente incompreensíveis”. Depois de tirar o canto novo e deixar a voz “fatalizada nas alturas”, Chico Antônio, trazendo-a de novo para os “sons normais”, parava de chacoalhar o ganzá, “discursava em sons feito louco, engolia palavras pra respirar. Os coristas imaginavam que era a volta do refrão e o iniciavam, mas no zumbido coral esboçado, o coqueiro continuava num texto inventado e sem nexo, multiplicando versos-feitos sobre sertão, despedidas, bois, amor e trabalhos de engenho, numa lucilação sobre-humana em que todo o Nordeste se expandia com fragor. […] A coisa estava insustentável. Mas porque lhe faltou de repente uma rima, Chico Antônio desembestou pra uma enumeração inconcebível de nomes de engenhos e usinas. E todos o perdoavam. Todos o amavam, é a verdade”.[6] A enumeração descabida é perdoada; mas decerto a complacência do público com esse êxtase individualista já fora preparada pela repetição monótona e invariável de um breve coco tradicional, a qual “enfraquecia os corpos num descanso largado e aceitador”.[7]
Em Amar, verbo intransitivo, narrativa classificada como idílio pelo autor,o uso de estruturas alógicas, avalizado tanto pela pesquisa sobre formas artísticas coletivas como pela pesquisa sobre as vanguardas, servia como despistamento da matéria tratada, que tinha como centro a relação entre Fräulein Elza, preceptora, e a elite paulista. A decepção social e os ressentimentos do homem culto, pequeno-burguês e sua busca de reconhecimento social numa sociedade em que tudo o constrange — não é por acaso a referência a Werther, de Goethe — apresentava-se como um tema espinhoso, uma espécie de pulsão indesejável no palco do debate em torno do nacionalismo, que é o texto manifesto do livro. Dessa maneira, embora constituísse o núcleo do romance e relegasse ao segundo plano assuntos que pareciam mais relevantes num primeiro momento, a tensão entre classes sociais, reforçada pelo desengano amoroso, um tema por excelência do romance burguês, era apaziguada por procedimentos de abstração próprios à lírica e à narrativa de vanguarda, no que estes tinham em comum com as técnicas de fatura da arte popular, como se imitassem o “ingênuo” — para usar a famosa categoria com que Schiller trata a arte cuja relação com a natureza e o mundo ainda não se tornou problemática. Ocorre que isso não vinha a ser sempre a regra, pois o ressentimento social no livro podia, por vezes, aparecer tratado de maneira realista, ou sentimental. Foi o que chamamos de sublimação frustrada.[8] A maior simplicidade do tom folclórico (de que o narrador, às vezes aparentado a um contador de causos, é parte importante) não era consumada a ponto de se apagarem todas as marcas da realidade mais imediata, isto é, todas as marcas da experiência específica de um indivíduo (cuja consciência tenha interiorizado forças objetivas numa determinada realidade histórica e social). A figura de Elza tendia para a despersonalização, tendia a se tornar a personagem a-histórica de uma canção popular — mas apenas tendia; ainda era possível vislumbrar nela elementos de uma individualidade.
“Por outro lado, a busca de Mário de Andrade por formas ingênuas de expressão não significava apenas evasão, interdição de assuntos embaraçosos. Nessa imitação frustrada de procedimentos compositivos da poesia popular havia uma intenção, talvez difusa ainda nos primeiros anos da década de 20 e mais consciente a partir de 30, de apurar nossa percepção para o sofrimento e a realidade indiciados na produção artística anônima e tornados incaracterísticos pelo tempo, por acomodações rítmico-melódicas e pela dominação social. Essa intenção é claramente enunciada no Banquete:
– Pois é, Sarah Light… Eu compreendo que você goste da música do povo, mas… trabalhada, alimpada de sua força e da sua dor… Quando o povo canta “Fui passar na ponte – A ponte tremeu – Água tem veneno – Quem bebeu morreu” a gente acha bobagem e conclui que as frases não tem [ sic] ligação. Ou apenas acha graça sem se comover com tudo o que existe de profundo, de queixa, de fraqueza, de aviso sombrio nessa quadra. E nos divertimos com entusiasmo vendo isso bem-educadamente transportado por um compositor num gordo coral a quatro vozes. Si Rainer Maria Rilke, bem dentro do estilo e da personalidade dele, escrevesse num poema “Oh roseira, murchaste a rosa”, toda a gente ficava assombrada com a força sugestiva e dolorosa desses versos. Mas como isso é refrão dum coco nordestino, até folcloristas já ouvi falar que é parolagem boçal… Por onde se vê que a comoção estética também depende de casualidades… legitimamente ilegítimas, não há dúvida”. [9]
O sofrimento de Elza não raro é indicado por meio de canções populares, pelas quais o conteúdo de seu ressentimento é vagamente assinalado.
Mas canção popular e romance moderno estão aqui em determinação recíproca. Ao serem assim aproximados, o romance por sua vez joga luz sobre o que se tornou fluido e quase indistinto num versinho de coco, por exemplo. Como se fosse preciso repor a riqueza de determinações que a dominação social abstraiu. Daí a necessidade de afinar a percepção para as conexões, já borradas, entre os versos aparentemente alógicos de uma canção anônima. Quadrinhas ligeiras e inofensivas portam tanto “aviso sombrio”, sugestão e polissemia como os versos mais vagos de Rilke. Podemos dizer, então, que a sublimação frustrada do sofrimento individual na dicção amena do folclore se articula com a dessublimação do sofrimento popular na dicção sentimental. Reatualiza-se o processo no qual a experiência historicamente localizável da humilhação, por exemplo, foi filtrada de concreticidade até emergir em forma por assim dizer atemporal. Mas esse “atemporal” carrega índices de um sofrimento específico.
Concluindo, podemos dizer que temos de um lado um processo de recalque da experiência individual e de outro o desrecalque da experiência anônima. Como disse, por esses processos estarem reciprocamente determinados, um instrui sobre o outro por aproximações, um pouco à maneira das baudelairianas “correspondances”. Em Macunaíma, isso virou sistema. A rapsódia está em registro fabular, e não só parte dela, como é o caso em Amar. Embora imite procedimentos compositivos do populário, Macunaíma não é uma obra ingênua. Com habilidade a polêmica é esfumaçada, mas está presente e ensombra o andamento em allegro do livro. Esse recurso chega ao virtuosismo, obtendo um máximo de sugestão e polissemia e um mínimo de determinação. Ora, o que aparece determinado? Numa obra em que cada seqüência contradiz a anterior, um método razoavelmente seguro deve ater-se ao ponto de virada entre as seqüências, o gesto por assim dizer coreográfico que as liga, gesto de maneira nenhuma sintetizador já que mantém as partes vibrando isoladas em sua especificidade. A unidade inacabada da obra permite que o múltiplo se manifeste, e isso não se dá sem perturbação do sentido.[10] De um certo modo, este depende da legislação da linguagem, da “inteligência estrutural” que Haroldo de Campos estendeu a uma instância vista como anterior ao sujeito. Por oportuna que seja essa leitura, pois ela contrabalançava o Mário de Andrade psicologista, convém perguntar se, ao tirar a primazia “romântica” atribuída ao sujeito e enfatizar uma objetividade e universalidade da expressão lingüística, não estaria ela incorrendo em mitologia também. Trata-se, a nosso ver, de investigar a relação entre linguagem e sujeito nos termos dos impasses colocados pelo modernismo (e pela modernização) no Brasil. Se, de um lado, a desgeografização e (a descronologização) operada por Mário de Andrade é um modo de desespecificar a linguagem pelo alinhamento de registros linguísticos de regiões geográficas (e etapas históricas) diversas, um modo de promover o lugar de encontro entre instâncias separadas, de outro busca-se liberar o que essas línguas e elementos folclóricos não falam mais. A liberação do conteúdo se efetivaria por ressonâncias; ou o conteúdo assim liberado seria antes as “relíquias, capita mortua daquilo nas idéias que não se deixa presentificar: mesmo na sua universalidade aparentemente longínqua figuram como marcas de um processo”.[11] O procedimento de justaposição, verificado não apenas na linguagem, pretende trazer à tona as cabeças mortas dos processos justapostos, aos quais temos acesso aproximativamente. “É musical a transformação da linguagem num alinhamento cujos elementos se articulam de outro modo que no raciocínio”.
Não podemos procurar em Macunaíma continuidade onde apenas há descontinuidade cognitiva. Numa obra de tantas intermitências, uma parte nem sempre leva à outra; a bem da verdade, como procuraremos mostrar ao longo do trabalho, é muito tênue o vínculo entre o episódio da perda da muiraquitã e o episódio da luta com o gigante. Os ruídos são tantos entre um e outro que onde pensamos ver causalidade e identidade há antes vaga lembrança (por que razão vim mesmo aqui?, parece perguntar o protagonista a cada vez). Macunaíma está sempre a ponto de se esquecer. O personagem desliza de um fragmento a outro, sem indícios fortes de que carrega sua história pregressa. Nada mais sólido que a muiraquitã, nada mais facilmente abandonável. Há uma espécie de primazia da forma sobre o conteúdo, o qual reluta em se afirmar (referir importância das metamorfoses e enumerações). Assim, a possibilidade de sentido não parece advir tanto do percurso de Macunaíma, espécie de sucata do livro (todo inorgânico, já sem sangue) mas da constelação dos fragmentos, que chamam a atenção menos pelo que colaboram para o “argumento” principal do que pelo caráter inusitado, singular, desprendido das linhas principais da narrativa, que, por esse convívio, também saem relativizadas. Se a ênfase agora recai nos fatos pré-artísticos da langue, embora artisticamente agrupados, quer-se justamente fazer falar o que, no anonimato do folclore, ficou aquém do universal e abstrato. Em certo sentido, busca-se fazer que aqueles fatos pré-artísticos adquiram concreticidade histórica. Nesse ponto, o elemento subjetivo volta por um caminho tortuoso: quem enunciou tal canção folclórica antes que ela se tornasse geral? O intuito é desmitificador: a abstração não foi desde sempre, mas aconteceu a partir de algum momento. No entanto as marcas de seu sujeito se apagaram. Nesse aspecto, a comparação de Macunaíma entre “Vida de cantador”, composto à maneira de uma “vida de santo”, sobre o coqueiro que o autor conheceu pessoalmente e muito o entusiasmou poderia ser proveitosa, por diversos aspectos, a começar pelo caráter popular do herói, pelo percurso análogo, do campo até a cidade, e as frustrações daí advindas, e pelo recurso às enumerações. No caso de “Vida de cantador”, não são recursos do narrador, mas do objeto narrado (as enumerações se contam entre os “processos individualizantes do folclore”, observa Mário, e são bastante utilizadas pelos coqueiros); no caso de Macunaíma, são expedientes do narrador, não-popular, e, mais do que isso, competem com a ação rapsódica, formulando de maneira muito particular a problemática que Lukács identificaria no ensaio “Narrar ou descrever”, dos anos 30. Bem, mas isso é outra história…
Notas
[1]. “Vanguarda e nacionalismo na década de vinte”, Exercícios de leitura, São Paulo, Duas Cidades, 1979, p. 259.
[2]. “Parnasianismo”, O empalhador de passarinho, São Paulo, Martins/INL/MEC, São Paulo, 1972, p. 10.
[3]. “Neste espaço lendário e neste tempo primordial, circulam os personagens imprecisos e descaracterizados da narrativa. De certo modo, todos estão sujeitos a uma espécie de oscilação semântica que os envolve num halo de determinação”. O tupi e o alaúde, São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, p. 33.
[4]. Apud R. Williams,“Linguagem e vanguarda”, in Políticas do modernismo, trad. André Glaser, São Paulo, ed. Unesp, 2007, pp. 53-54.
[5]. “Castro Alves”, Aspectos da literatura brasileira, n. 5, São Paulo, ed. Martins, p. 181.
[6]. Vida de cantador, ed. crítica Raimunda de Brito Batista, Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Villa Rica, 2003, pp. 47-48.
[8]. Ver, de nossa autoria, Em busca do inespecífico, São Paulo, editora Nankin, 2002.
[10]. T. Adorno, “Parataxis”, Notas de literatura, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1973.
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