O mundo das imagens e a produção de memórias visuais
No artigo intitulado “O mundo da imagem: território da história cultural”, (1) a historiadora Sandra Jatahy Pesavento recorda que as imagens são anteriores à escrita e, portanto, o ato de ver é anterior ao de falar e de escrever. O sentido humano da visão constitui a primeira capacidade a nos permitir, ao nascer, a percepção e a compreensão da realidade. Do ponto de vista histórico, os registros mais antigos da humanidade pertencem aos domínios das figuras rupestres e imagens tridimensionais materializadas em vasos, obeliscos e monumentos. As imagens tornaram-se uma forma de expressão e comunicação que traduziu, ao longo dos séculos, os costumes e o universo cultural dos diferentes povos. Mesmo com o aparecimento de outros processos de representação por meio de pictogramas, de ideogramas e posteriormente do alfabeto, que resultaram no surgimento da escrita na Antiguidade, a comunicação e o registro por meio de imagens continuou a existir. O surgimento do livro e, na contemporaneidade, do computador, ao invés de reduzir a presença das imagens, ampliou os mecanismos de difusão e universalização desta modalidade de expressão e comunicação humana.
A representação por meio de imagens é uma ação humana portadora de intencionalidades e significações, carregadas de simbolismos que conectam múltiplos referentes. É preciso lembrar, por outro lado, que “as imagens não são um duplo do real, mas o atestado de intenções e sensibilidades, fruto de um olhar sobre o mundo em uma determinada época”. (2) Assim, as imagens são escrituras no tempo, narrativas, reinvenções a partir de construções estetizadas do mundo. Nesta perspectiva, ao recriar e materializar a imaginação humana, as imagens nos dizem muito sobre o tempo e as sociedades em que foram produzidas, portanto, estão impressas com a marca da historicidade transformada em produção simbólica de sentido. Assim, como afirma Pesavento,
Textos e imagens compartem ainda o lugar do pertencimento como produção individual e coletiva, e expressam-se em terrenos e campos comuns, tais quais as identidades, a natureza, a paisagem; os perfis, as biografias, e os retratos; as performances individuais e coletivas – o povo, o popular – as utopias e as construções imaginárias do passado e do futuro. (3)
Nestes termos é necessário apontar a propriedade que as imagens possuem de estabelecer relações entre as experiências vividas – individual e socialmente – com a dimensão imaginária, com a criação que se expressa por meio da linguagem artística. A análise das imagens significa reconhecer esta linguagem como uma experiência social que se materializa por meio de diferentes suportes. A leitura das imagens implica, portanto, a interpretação dos processos sociais de produção de sentido.
Além das dimensões históricas, sociais e artísticas da produção e dos usos das imagens, é necessário apontar outros domínios relacionados: o domínio das representações visuais enquanto objetos – desenhos, fotografias, gravuras, filmes – que constituem o ambiente visual em que vivemos e o domínio das representações mentais que se expressam por meio da memória, do imaginário e da imaginação. Estes domínios apontam para as dimensões semióticas e cognitivas das imagens. (4)
A iconografia do cordel
O folheto de cordel pertence a um gênero particular da poética em que as linguagens oral, escrita e imagética estão intrinsecamente relacionadas. Produzido com caraterísticas gráficas específicas para se popularizar entre leitores pouco familiarizados com a escrita, os poetas e editores de cordel utilizam a capa do cordel um espaço privilegiado para associar o texto escrito a uma imagem, potencializando a fixação do título do poema e da narrativa em verso na memória dos leitores. A imagem presente no cordel não é uma mera ilustração do texto, mas uma linguagem produtora de sentidos e significações. Neste sentido, as capas e quarta-capas contribuem para a elaboração de memórias visuais associadas ao cordel. O folheto de cordel veicula uma imagética por meio de uma estética singular, que possui uma forma e intencionalidades. Portanto, o objetivo deste texto é chamar a atenção para a necessidade de pesquisas acerca dos referentes históricos, cognitivos, técnicos e estéticos presentes na feitura do cordel e considerar as imagens como constituidoras de narrativas visuais que empregam outros códigos, além da oralidade e da escrita. A pesquisa de base para esse texto foi realizada a partir do acervo digitalizado da Fundação Casa de Rui Barbosa, disponível para consulta na internet, do acervo organizado pelo poeta José Alves Sobrinho pertencente atualmente à Universidade Federal de Campina Grande e do acervo particular.
Ao longo da história das práticas relativas à editoração do cordel a capa e a quarta capa se tornaram os espaços reservados para a veiculação de imagens. Nas capas dos cordéis são adicionadas informações editoriais importantes para os leitores: título, autor, preço, e, em alguns casos, editora/tipografia e cidade onde o folheto foi impresso. Além destas informações, as capas apresentam uma imagem - fotografia, desenho, clichê ou xilogravura – que condensa a trama da narrativa em verso. A imagem tem como função possibilitar uma rápida identificação da história presente no livro, facilitando a compreensão de seu conteúdo pelo leitor. Não é coincidência, nestes termos, o fato de que no cordel a imagem precede ao texto.
Na última folha, mais conhecida como “quarta-capa”, outros elementos fundamentais podem vir a aparecer: a fotografia do autor do cordel, o local da edição, além de anúncios diversos, desde aqueles de finalidade comercial, a listagem de obras anteriores do autor, orações, recados e até mesmo querelas pessoais entre os poetas.
As imagens presentes nos folhetos de cordel constituem um modo específico de narrativa, de recordar e de pronunciamento. Estas imagens mimetizadas, replicadas, (re) produzidas ao longo do tempo, dialogam por meio da arte poética com a historicidade. É possível afirmar que no cordel, a oralidade, a escritura e a imagética se condensam a fim de expressar múltiplos sentidos. O imaginário veiculado por meio do cordel requer compreender como ocorre segundo Gilvan de Melo Santos “o processo de formação, interação e polarização de imagens”. (5)
No entanto, este artigo propõe a análise das imagens presentes nos folhetos de cordel enquanto narrativas que possuem a experiência ou acontecimento (na sua dupla perspectiva, pois o acontecimento evoca os planos do real e do imaginado, neste caso o imaginado pelo poeta, pelo xilógrafo, pelo desenhista) como referente.
A iconografia do cordel se operacionaliza por meio da repetição exaustiva do mesmo repertório de imagens, pois “tudo que é dito é necessário que já tenha sido dito, sendo que esse dizer jamais é repetido. É necessário que algo já tenha sido dito e esquecido, apagando-se certos sentidos para assim, ressurgir e fazer outros sentidos”. (6) Os poetas do cordel prefiguram o narrador no sentido atribuído por Walter Benjamin, como aquele que recorre às experiências pessoais, especialmente aquelas que se transmitem pela oralidade, como principal fonte. (7) Por outro lado, as capas não refletem apenas a intencionalidade dos editores, mas expressam as imagens que circulam socialmente:
Esta história deve ser entendida como o estudo dos processes com os quais se constrói um sentido. Rompendo com a antiga ideia que dotava os textos e as obras de um sentido intrínseco, absoluto, único — o qual a crítica tinha a obrigação de identificar —, dirige-se as práticas que, pluralmente, contraditoriamente, dão significado ao mundo. (8)
As imagens pressupõem um espectador, um destinatário; portanto, toda imagem é uma modalidade de comunicação. Por outro lado, o espectador também estabelece significações e correlações entre aquilo que vê na capa do cordel com outras imagens e outras experiências. Nestes termos o espectador confere sentido ao que é visto ao buscar no seu “arquivo de memória”, no seu “museu imaginário” os elementos para elaboração de sentido. Interessa-nos analisar como o folheto de cordel registra, documenta e projeta imagens no sentido simbólico do termo. Estas imagens, associadas, conectadas, condensadas, produzem e evocam imaginários. Estas características – históricas, sociais, editoriais, literárias, plásticas, imagéticas – constituem a “identidade” do cordel enquanto arte da memória.
As tecnologias e a produção de imagens no cordel
A história da identidade visual do cordel está relacionada com a dimensão das diversas técnicas de ilustração utilizadas para apresentação das imagens que cabe aqui recuperar. No entanto, é necessário compreender que a memória visual do cordel implica, de igual modo, analisar a iconografia e as elaborações simbólicas presentes nos folhetos. Portanto, é no cruzamento entre a história das tecnologias de impressão e a análise transdisciplinar das imagens – e do imaginário às quais se reportam – que poderemos avançar nos estudos acerca da memória visual do cordel.
As primeiras tecnologias de impressão de imagens na literatura de cordel estão relacionadas com a de produção de gravuras em relevo. A gravura pode ser definida como técnica de representação de imagens a partir da incisão sobre uma superfície dura (metal, madeira, pedra) com o auxílio de instrumentos de corte (buril, estilete, agulha, faca, e até mesmo bisturi cirúrgico ou haste de guarda-chuva), cujo resultado é impresso sobre o papel.
De acordo com a superfície a ser utilizada, a técnica de gravura recebe nomes distintos, sendo as mais utilizadas a xilogravura (gravura em madeira, técnica desenvolvida na China entre os séculos V e VI), a linoleogravura (gravura em linóleo, tecido impermeável desenvolvido na Inglaterra em 1860 obtido a partir da juta, uma fibra têxtil, e óleos vegetais) a zincogravura (zinco ou qualquer metal, desenvolvida pelo francês Firmin Gillot em 1850), a fotogravura (técnica que utiliza uma folha de retícula para a produção da imagem e permite o uso de cores) e o clichê (técnica de gravura em relevo desenvolvida no século XV que emprega ácidos sobre uma superfície em metal). (9)
Outra técnica importante na história visual do cordel é a litogravura, desenvolvida no século XVIII, que utiliza inicialmente a pedra calcária onde a imagem é desenhada com uso de lápis, fuligem, cera de abelha ou sabão e posteriormente fixada na pedra com auxílio de ácidos. A litogravura foi adequada ao metal e introduzida nas máquinas de impressão em forma de cilindros, quando deu origem ao offset, técnica bastante utilizada pelos editores de capas coloridas. No Brasil, a Editora Luzeiro se especializou na confecção de capas coloridas de folhetos de cordel por meio da técnica do offset.
Nos primeiros cordéis publicados no Brasil as capas possuíam apenas informações essenciais ao público: o título da história e o autor. Algumas traziam ainda o local, ano de publicação, editora responsável e preço. Estas informações eram ornamentadas por pequenos filetes que serviam de moldura para as capas e ficaram conhecidas como vinhetas. Por não possuírem ilustrações, esses livros eram chamados de folhetos “sem capa” ou folhetos de “capa cega”. Os folhetos “sem capa” ou de “capa cega” registram as técnicas de editoração bem como a concepção estética dos cordéis editados no Brasil nas primeiras décadas do século XX por Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista e João Martins de Athayde. Os primeiros folhetos recorriam a variados recursos para composição tipográfica das capas, tais como a disposição dos nomes do autor, do título do poema e do local de comercialização, tipos de tamanho e de estilos diferentes, além de diferentes estilos de vinhetas que serviam de ornamento e de moldura para direcionar o olhar do leitor. A composição do folheto pode ser definida como um arranjo editorial e tinha por objetivo chamar a atenção do leitor e permitir a identificação do livro por sujeitos com pouca familiaridade com a palavra escrita. Portanto, a composição tipográfica dos folhetos tinha como objetivo agradar esteticamente aos leitores e impulsionar a venda destes livros.

Figura 1. Folheto “sem capa”. Francisco das Chagas Batista, A vida de Antônio Silvino, Imprensa Industrial, Recife, 1905
Os poetas e editores Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista foram pioneiros na introdução de imagens na literatura de cordel produzida no Brasil. Em 1907 o folheto O Dez reis do governo, editado em Recife por Leandro Gomes de Barros, já apresenta duas pequenas ilustrações em sua capa, como é possível observar na reprodução a seguir:

Figura 2. Capa do cordel de Leandro Gomes de Barros, O dez réis do governo, 1907.
Algumas das imagens produzidas na época foram fotografias impressas com a técnica do clichê de metal, como é possível observar nas capas reproduzidas abaixo, em que a imagens aparecem no centro da capa, ornamentadas por vinhetas.

Figura 3. Capa do cordel de Leandro Gomes de Barros, Antonio Silvino, no jury. Debate de seu advogado.

Figura 4. Capa do cordel de João Mendes de Oliveira, Conselhos do Padre Cícero.
Um dos objetivos desta investigação é dar a conhecer quem foram os artistas requisitados pelos poetas para ilustrar estes cordéis, posto que é necessário retirar do anonimato as pessoas que contribuíram para a elaboração da identidade visual do cordel. No entanto, a ausência de informações sobre a autoria das imagens tem sido um dos principais obstáculos, o que requer um trabalho minucioso e uma atenção a todas as informações presentes no folheto que permitam identificar quem foram aqueles que conferiram um rosto, uma face, aos personagens elaborados pela imaginação dos poetas.
Ao longo da pesquisa com cordéis impressos nas primeiras décadas do século XX foi possível identificar alguns dos desenhistas que produziram as imagens estampadas nas capas dos primeiros cordéis editados no Brasil. A maior parte destes desenhistas trabalhava na produção de ilustrações para o Jornal do Recife e para o Diário da Manhã, além de folhetins publicados na Typografia da Livraria Francesa e na Imprensa Industrial, localizadas na cidade de Recife, Pernambuco. João Martins de Athayde foi um dos responsáveis pela introdução de ilustrações nas capas dos folhetos, quando montou tipografia própria em 1909 na cidade de Recife.
Antônio Avelino da Costa foi um dos desenhistas mais requisitados por João Martins de Athayde para a ilustração de seus cordéis. Na parte inferior direita das imagens, Avelino costumava assinar seus desenhos. As imagens criadas por Avelino sugerem a presença de tipos populares, prostitutas, homens pobres, boêmios, muitos com aparência esquálida e alguns com fisionomias tristes.

Figura 5. Capa em linoleogravura do cordel O bataclã moderno. Desenho Antonio Avelino

Figura 6. Capa do cordel A História de Pedro Cem. Desenho de Antonio Avelino da Costa

Figura 7- Capa do folheto História do boi misterioso. Imagem de Antonio Avelino da Costa
A partir do exame dos folhetos impressos nas décadas de 1910 foi possível perceber uma importante mudança na identidade visual do cordel, posto que começam a aparecer folhetos com imagens criadas com exclusividade para os folhetos; além disto, estas imagens permitem identificar a autoria das ilustrações. Ao longo dos anos as imagens passam a ocupar lugar de destaque na capa dos cordéis. As figuras aumentam significativamente de tamanho e adquirem movimento e dramaticidade. As imagens estáticas e com um único personagem são substituídas por cenas, envolvendo figuras humanas, animais e cenários, onde as tramas acontecem. Além disto, a introdução da imagem do autor passa a disputar lugar com as ilustrações, o que demonstra a preocupação para com a violação dos direitos autorais de publicação.
No folheto História de João da Cruz, de autoria de Leandro Gomes de Barros, é possível ler com clareza o nome do ilustrador Silvério. Na narrativa de Leandro Gomes de Barros, João da Cruz tem diante de si dois caminhos: o caminho esquerdo conduziria João da Cruz para o mal e era representado pelo Diabo; o caminho direito levaria João da Cruz para o bem e a felicidade. No cordel uma mulher trajando longos cabelos aponta para o caminho do bem. Na capa do cordel História de João da Cruz o anjo Lusbel figura no centro da imagem carregando em uma das mãos uma espada e na outra uma balança. Lusbel tem ao seu lado as figuras de Satanás e de uma mulher. O folheto trata da luta interior que atormenta o jovem João da Cruz que se divide entre seguir o bem ou seguir o mal.

Figura 7. Imagem da capa do cordel História de João da Cruz.
Desenho de Silvério, 1917
O cordel História de João da Cruz foi editado e impresso em 1924 por João Martins de Athayde, que aparece como autor do folheto, após a compra dos direitos autorais da obra de Leandro Gomes de Barros, em 1921. A imagem abaixo, produzida por Antônio Avelino da Costa para a capa do cordel História de João da Cruz reproduz a mesma cena encontrada no folheto editado por Leandro Gomes de Barros:

Figura 8. Capa do cordel História de João da Cruz. Desenho de Avelino, 1924
Décadas depois, a História de João da Cruz foi reeditada pela Tipografia Souza (Luzeiro Editora). (10) Apesar das inovações técnicas que permitiram a reprodução em cores da capa do cordel, estratégia utilizada pela Tipografia Souza em São Paulo (que passou a se chamar Editora Prelúdio e posteriormente Luzeiro Editora) bem como pela Editora Livraria Antunes, no Rio de Janeiro. Mesmo com as constantes reedições desta história e das modificações técnicas pelas quais as capas dos cordéis passaram ao longo do século XX, a imagem inicial elaborada por Silvério em 1917 para o folheto de Leandro Gomes de Barros ainda permaneceu como referência, como é possível observar na capa reproduzida a seguir:

Figura 9. Capa do cordel História de João da Cruz impresso em offset pela Editora Luzeiro
Na década de 1950 as capas dos cordéis passam por uma grande mudança. Em 1952 o folheto História de Zezinho e Mariquinha (publicado pela Livraria H. Antunes) apresenta a impressão a cores na capa do cordel. A Editora Prelúdio, instalada na cidade de São Paulo em 1952, introduziu alterações significativas na tecnologia de impressão dos folhetos com o uso da técnica em offset. Assim, os cordéis impressos na Prelúdio alteraram significativamente a identidade visual do cordel desenvolvida pelos primeiros editores, ao incorporar a estética das revistas em quadrinhos e das revistas de fotonovelas (década de 1970).

Capa de folheto produzido na Luzeiro Editora em 1959.

Capa de folheto produzido na Luzeiro Editora de 1974
No entanto, a história visual do cordel possui um capítulo à parte, para o qual dedicaremos as páginas a seguir. Trata-se da introdução da xilogravura na elaboração das capas que provocou uma transformação mais importante na história da estética do cordel.
O visgo das imagens: a xilogravura
Do ponto de vista técnico, “é um desenho escavado na madeira. O escavado é o branco, o preto é o alto relevo”. Assim a xilogravura foi definida em poucas e precisas palavras pelo gravador João Pedro do Juazeiro. Ele se define como um cirurgião que com um taco de madeira faz ressurgir seres que estavam adormecidos em sua mente.
Em outros termos, a tecnologia envolvida na arte da xilogravura se inicia com o estranhamento entre um indivíduo e um pedaço aparentemente inerte de madeira. Entre os dois – indivíduo e natureza - instrumentos de corte, os mais diversos, implicados em cada fase de elaboração da imagem. A aproximação inicial com a gravura se constitui num desafio no qual a alteridade que se instaura entre formas distintas de vida – humana e vegetal – se expressa. Nesta fase o corpo humano sente, tanto quanto a madeira, o embate, como assinala o xilógrafo Francisco Bruno: “é uma arte a princípio muito dolorosa, você se corta, o dedo dói. Mas é muito prazerosa porque você se acostuma e a madeira passa a ser um isopor.” Ao flagelo da madeira corresponde o flagelo das mãos, quando seiva e sangue se fundem, quando acontece a “peleja, você e a madeira, a madeira e você”. Nesta disputa não existem vencedores, apenas transformação de forma e energia em imagem.
A xilogravura se incorporou de maneira intensa na literatura de cordel. Utilizada inicialmente para diminuir os custos de impressão nas cidades do interior, bem como para acelerar o processo de impressão dos folhetos, a xilogravura conferiu outra identidade visual ao cordel. O contraste branco preto, semelhante à fotografia, imprime um processo mais direto de comunicação por meio da imagem, como é possível observar no folheto de Abraão Batista sobre a história da moça que se rifou para ir morar em São Paulo:

Figura 10. Capa do cordel de Abraão Batista, Ana Paula, a jovem que se rifou para ir morar em São Paulo.
A partir destas imagens é possível perceber como a xilogravura consegue se converter num signo pela capacidade de comunicar de maneira direta a mensagem presente na narrativa em verso presente no interior do cordel. Há uma correspondência e similaridade entre o título do folheto, a imagem e a narrativa.

Figura 11. Capa do cordel de J. J. Santos (Mestre Azulão), A morte de João Hélio. Xilogravura de Erivaldo
A iconografia do cordel tornou possível a criação de mundos e de seres que vieram ao mundo enquanto palavra, pensamento, imagem e verso. Mundo de seres que nasceram da violência do gesto que retira a árvore do solo. Figuras que devem suas vidas às custas da morte de tantas outras. Árvores retiradas à força da terra e que perdem, com as sucessivas incisões de machados precisos, suas raízes, suas cascas, sua seiva e suas conexões com a dimensão botânica da existência. Resta-lhes apenas o tronco inerte que chega, aos pedaços, às mãos do artista que habilmente recorre a outros instrumentos de corte – serrote, coifa, buril, estilete, goiva, lima, furadeira, prego, bisturi, faca de mesa, serra de pão, haste de guarda chuva, além das ásperas folhas de lixas — para retirar outras camadas da madeira, desta feita para assumir formas previsíveis ou imaginárias, que são dadas a ver após o término de sua arte.
Figuras que se convertem em pretexto para perenizar cosmologias, manter tradições, registrar acontecimentos, elaborar fábulas, instigar a reminiscência, produzir memórias, entabular conversas, provocar risadas, estabelecer relações sociais. Papéis e peças frágeis como a própria vida caem no chão, no lixo, e como quaisquer outros corpos estão sujeitos a quebrar-se, queimar-se, corroer-se, esmaecer-se com o tempo ou, com muita frequência, pela ânsia devoradora dos cupins. Imagens fugidias capturadas pelo esquecimento desaparecem das retinas e das memórias e voltam à vida por meio dos folhetos.
Bibliografia
Depoimento
Francisco Bruno Elias da Silva. Xilógrafo. Entrevista realizada em Juazeiro do Norte, em 23 de janeiro de 2013.
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Notas
(1) S. J. Pesavento. “O mundo da imagem: território da história cultural” em S. J. Pesavento; N. M. W. Santos & M. de S. R,
Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos em história cultural, Porto Alegre, RS, Asterisco, 2008, p. 99-122.
(4) L. Santaella e W. Nöth, Imagem: cognição, semiótica, mídia, São Paulo, Iluminuras, 2008.
(5) G. M. Santos, Dos versos às cenas: o cangaço no folheto de cordel e no cinema, Campina Grande, Gráfica Marconi, 2013, p. 45.
(6) C. R. P. Granjeiro, O discurso político no folheto de cordel: a besta-fera, o Padre Cícero e o Juazeiro, 2007. 174f. Il. Tese. (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa), Universidade do Estado de São Paulo, Araraquara, 2007, p. 62.
(7) W. Benjamin, “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 198.
(8) R. Chartier, A história cultural, entre práticas e representações, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil S.A, 1990.
(9) L. Hata, O cordel das feiras às galerias. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária), Campinas, UNICAMP, 1999, p. 24.
(10) A. Raquel Motta de Souza, no estudo intitulado Editora Luzeiro: um estudo de caso apresenta um histórico desta editora estabelecida em São Paulo e que se especializou na edição de cordéis. Atualmente é uma das editoras mais antigas ainda em atividade no Brasil. Ana Raquel Motta de Souza traz informações importantes sobre como a Luzeiro Editora (que em 1981 passou a se chamar Editora Luzeiro) se inseriu no mercado da literatura de cordel:
“O histórico da Editora Luzeiro confunde-se com a vida de seu proprietário até 1995, Arlindo Pinto de Souza. Na década de vinte, o pai de Arlindo, José Pinto de Souza, vindo de Portugal, estabeleceu-se em São Paulo com a Tipografia Souza, que imprimia, em folhas soltas, modinhas musicais de sucesso da época para crianças e cegos venderem nas ruas. Depois passou a juntar várias modinhas e vendê-las no formato de livrinhos, nos moldes do folheto de cordel português, que ele já conhecia por ter sido leitor em Portugal. Notemos que, nesta fase, José Pinto de Souza apenas utilizava a forma do livreto de cordel português. Até que, em seguida, passou também a publicar as histórias que eram vendidas em Portugal. Este foi o primeiro passo da Tipografia Souza rumo a outro universo editorial, que não o das letras de música (modinhas).
A partir do momento em que a Tipografia Souza passou a publicar, com sucesso de vendagem, histórias em verso, José Pinto de Souza começou a perceber que poderia investir mais neste tipo de publicação. Conhecia a literatura de folhetos nordestina no Brasil, que já vinha sendo trazida na bagagem dos migrantes dos estados do Nordeste que, cada vez mais vinham tentar a vida em São Paulo. Sabia também que, embora o cordel português e o folheto nordestino coincidissem por ser literatura em verso e fossem parecidos na materialidade dos livretos, eram diferentes formas poéticas. Decidiu publicar as histórias brasileiras, que já eram conhecidas e lidas por essa população que então chegava em São Paulo. Publicou, inicialmente, as histórias de domínio público, sem autor individual. Com isso evitava pagar direitos autorais.”
A. Raquel Motta de Souza, Editora Luzeiro: um estudo de caso. Disponível em http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/raquel.html. Data de acesso: 20 de dez. 2014.