Vai o diabo em casa do alfacinha” (des)amores e outras desordens nos entremezes portugueses de cordel de Setecentos

Luis Manuel Tarujo
FCSH/UNL (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa), IELT (Instituto de Estudos de Literatura Tradicional)
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A pertinência dos estudos académicos dedicados ao século xviii português, mormente no que diz respeito ao seu teatro de cordel, é, atualmente, inquestionável. Apesar da feliz opção de um número significativo de investigadores pelo estudo das chamadas literaturas marginais em Portugal, acreditamos que muito haverá a fazer neste domínio ainda mal explorado, pelo que o modesto contributo que agora revelamos publicamente poderá ajudar na compreensão cabal do fenómeno do cordel português. O facto de estarmos reunidos em torno destas questões, muitas vezes polémicas, nesta ilustre Universidade, não deixa de ser sintomático de que algo tem vindo, nas últimas décadas, a mudar: a literatura de cordel começa a conquistar um espaço até há pouco tempo interdito, competindo com as produções dos escritores que enformam o cânone literário português e que têm monopolizado o discurso do poder adstrito ao local que, neste momento, nos acolhe.

Ao respondermos afirmativamente ao amável convite que nos endereçaram para aqui partilharmos as nossas últimas pesquisas, optámos por tratar a centúria de Setecentos, opção que não foi inocente. Por um lado, tivemos em consideração o elevado número de folhetos de cordel publicados, neste período, pelos impressores portugueses, com especial relevo a partir da década de 50, fenómeno que não encontra paralelo noutra época da história do nosso país. Por outro lado, acreditamos ser imprescindível debelar definitivamente preconceitos que pairam sobre o século xviii, prisioneiro de um agonizante barroco cuja futilidade é, para muitos pensadores, uma das suas imagens de marca, destronada por um neoclassicismo que confere a este período um cariz marcadamente dogmático ao qual se associa, no final da centúria, uma certa inabilidade como arauto do Romantismo.

Estamos, pois, perante uma época que ousou questionar valores e sistemas antigos e foi capaz de colocar o homem no centro de todas as reflexões, proporcionando-lhe uma nova atitude face ao nascimento, ao amor, ao casamento, à sexualidade e à morte, a que não serão alheias as intrigas dos documentos que dissecámos, como veremos. São precisamente estes textos, aparentemente sem valor, que, juntamente com tantos outros dados a lume no século xviii, contribuíram para uma verdadeira “revolução cultural”, favorecida pelo acesso generalizado ao saber, fruto da crescente vulgarização do objeto livro, poderoso instrumento ao serviço do conhecimento que passa, em Setecentos, a ser disponibilizado às classes menos favorecidas.

Afigura-se-nos que a literatura de cordel detém, em todo este processo, uma função de relevo. Graças ao seu sucesso, o negócio editorial nacional prosperou, permitindo a duplicação das obras e a massificação do livro e da leitura, ainda que, muitas vezes, coartada pelos efeitos perniciosos da censura que, reconhecendo a sua extrema influência, temia pela estabilidade do governo. Original, traduzida ou adaptada, a literatura de cordel mereceu o agrado do seu público. Este, muitas vezes, tinha nela a única hipótese de contactar com textos que, sob outra forma, corriam em meios que, pela sua exclusividade, lhe eram totalmente vedados.

Sendo inegável a relevância da literatura de cordel no acesso generalizado ao saber, surpreende-nos – convém insistir – a insuficiência com que, ainda hoje, a cultura popular em Portugal é estudada a nível académico, apesar de figuras proeminentes das questões marginais lhe terem dedicado grande atenção. Notemos que o epíteto popular é por nós usado no sentido preconizado por Ana Margarida Ramos: (1) a expressão do gosto e das preferências populares, ainda que mais popularizada que popular por não ser tanto do povo, mas para o povo, sem esquecermos a assertividade com que Oliveira Barata (2) emprega a expressão “literatura popular nacional” ao referir-se ao teatro de cordel.

Abstendo-nos da abordagem de questões terminológicas em torno do conceito de literatura de cordel, suficientemente explicitadas em publicações académicas de prestigiados autores, permitimo-nos unicamente referir que aquela designação não está isenta de equívocos e contradições e engloba um conjunto de obras providas de uma impressionante heterogeneidade temática e autoral a que se associa um destinatário igualmente diversificado, que não inclui, ao contrário do que se poderia supor, apenas o público socialmente menos favorecido.

Não podendo, por razões óbvias, tratar toda esta diversidade na nossa intervenção, tivemos de encontrar um critério válido que nos permitisse selecionar um conjunto significativo de documentos, pelo que optámos por trabalhar os folhetos que, de entre os milhares de obras que enformam o corpus nacional, pertencem ao género dramático, por serem aqueles que, na nossa opinião, ainda não foram objeto de um estudo global e aprofundado. Mesmo assim, o número de textos inviabilizaria uma análise aprofundada do material recolhido. Decidimos, por isso, fazer apelo a um dos temas caros à nossa literatura nacional: o amor. A opção pelo entremez resulta do facto de termos consciência de que, talvez por englobar produções breves e, supostamente, repetitivas, monótonas e desprovidas de qualidade literária, estas peças têm sido erradamente desprezadas. São cerca de quatrocentos os folhetos que trabalhámos, o que parece suficiente para garantir a fiabilidade de conclusões a que fomos chegando ao longo de quatro anos de investigação e que agora tornamos públicas.

Ilustrando a expressão aforística “Diz-me como amas, dir-te-ei quem és”, é-nos possível, utilizando os métodos dos estudos literários, mas também da sociologia, da história e até da psicologia, apresentar um contributo que nos parece importante para aprofundar a temática amorosa setecentista, à luz do teatro de cordel. São, pois, as aparentemente pouco interessantes peças que, ao serem minuciosamente cotejadas, revelam um mundo sui generis, recheado de declarações de amor mais ou menos originais; de casamentos inesperados; de uniões matrimoniais motivadas pelo dote da noiva e muitas outras, felizmente, fruto do amor; de uniões livres e de matrimónios impostos pelos pais e tutores. Uma realidade composta por (pouco) inocentes raparigas e velhas apaixonadas, dispostas a tudo pela conquista do seu amado; por homens e mulheres, casados ou solteiros, enfrentando desafios e ameaças, enganos e maus tratos; por velhos que amam jovens; por irmãos e maridos ciumentos; por mulheres possessas que arruínam os seus maridos e outras honestas e puras, maravilhadas pela descoberta do amor. Enredos que deixam transparecer um machismo enraizado contra o feminismo nascente; o amor sublime que contrasta com a paixão libertina; as alianças que se desfazem, mas, sobretudo, as uniões que se estabelecem contra tudo e contra todos, fazendo triunfar o amor. Na impossibilidade de nos referirmos a todas estas circunstâncias por manifesta falta de espaço, optámos por destacar as mais relevantes.

O amor é, sem dúvida, o tema mais trabalhado nos folhetos reunidos.

O tema do amor é clássico. Todo o espírito humano se estrutura tendo por base o amor. Por isso, Denis de Rougemont afirma “que qualquer ideia do homem é uma ideia do amor”. (3) De facto, sem este sentimento, seria impossível conceber uma história da humanidade. A vida amorosa encontra ecos na literatura, na arte, na filosofia, na religião… numa palavra, em toda a cultura.

Tratando-se da mais complexa e importante manifestação das emoções humanas, compreende-se que ao sentimento amoroso se tenham dedicado muitos dramaturgos setecentistas. Alguns deles fizeram mesmo questão de se atrever a defini-lo, como acontece com o Entremez Intitulado Indústrias de Lesbina (1773). Nesta interessante peça, considera-se o amor

h?a paixão violenta, / que na∫ce do coraçaõ, / que continuamente queima; / e que ∫ó tem por allivio, / ver que outra igual levareda / ∫ente o coraçaõ, que ∫e ama, / com mutua corre∫pond~ecia. / He hum zelozo furor, / h?a agitaçaõ violenta, / hum objecto ∫em igual, / e até, porque tudo ∫eja, / ∫endo menino, he Gigante, / na força, e na corpulencia. (4)

Tal é a força do amor: quando assalta um indivíduo, nada o faz conter-se, pois o “amor he mulher; e quem diz mulher ∫uppoem huma pe∫∫oa incapaz de ∫e callar, e obrigada ou a de∫cobrir o maior ∫egredo, ou arrebentar em 24 horas”. (5)

Assim concebido, o efeito do amor é tão poderoso que “os maiores homens fazem de∫propositos por e∫tes animaes [as mulheres]”, (6) pois “[n]aõ ha pe∫∫oa alguma, que ∫ujeita / Naõ viva ás leis de amor.” (7) e “[e]lle ha cou∫a melhor que ter amores? / Quem haverá no mundo que naõ tenha / Seus dois dedos d’affecto á formo∫ura?”. (8) Desta feita se justifica o comportamento de Zabumba, o marinheiro do Entremez Novo da Castanheira, ou A Brites Papagaia (s/d), que não consegue compreender o que está a acontecer consigo, pois, habituado a ter muitas mulheres, ama apenas uma, Papagaia, conforme se depreende das suas palavras quando procura a amada:

Adeos mãi Zabel vi∫te hoje / A minha amada caxopa? / Venho aqui a ∫eu re∫peito / Com ∫audades, vento em popa; / Naõ ∫ei que gracinha achei / Naquelles olhos traidores, / Que deixo barcos, e redes / Por e∫tes negros amores: / Brancas, Mulatas, Me∫tiças, / No Brazil já tenho tido, / Mas em toda a minha vida / Nunca me vi taõ rendido; / Creio que a beber me deu / Agua do banho da tina, / Depois de tanxar-∫e nella, / Com alguma arte maligna: / I∫to naõ he natural; / Amar eu, e de∫te modo / Amar ∫ó huma mulher, / Eu, que ∫empre as tive a rodo! (9)

Deste modo, poderá crer-se que não haverá outra coisa a fazer que não seja entregar-se totalmente ao sentimento amoroso. Por isso, Zabumba considera o amor como um cativeiro ao qual não pode escapar, mesmo que o deseje ardentemente. É precisamente o poder do amor que atrai os apaixonados que, mesmo assim, não se importam com o sofrimento que lhe parece estar inerente: lê-se no Novo Entremez Intitulado O Velho Presumido, e Enganado, e por fim Chorando e Vendo que “[…] o malvado Amor he hum bixinho (sic) roidor, que faz andar o coraçaõ em bolandas: tri∫te de quem ∫e entrega a elle que por força ha de padecer mole∫tias infernaes”. (10)

Apesar de tudo, a ideia que perpassa nos entremezes setecentistas é a de que o amor, personificado no menino deus vendado, é o único caminho para a felicidade e a sua busca incessante permite desculpar excessos e traições que em seu nome se cometem. De facto, o amor verdadeiro tem de sobreviver a constantes pressões que surgem de forma inesperada. Uma delas é o casamento que, muitas vezes, nada parece ter a ver com o amor. Neste contexto, não raros são os pais que se opõem à união dos filhos, preferindo casamentos convenientes a nível financeiro, e este obstáculo favorecerá as mais diversas peripécias rumo a um final que, em regra, é feliz.

Alguns folhetos referem – ainda que, muitas vezes, parodiando – situações em que os amantes, separados, preferem morrer a ter de casar com alguém que não amam. No Entremez Intitulado O Castigo da Ambição, ou O Velho Avarento, Enganado, e Desenganado, editado em 1771, Arminda, impedida por um pai interesseiro de casar com o E∫tudante, por quem está apaixonada, confessa a Olaia, a sua fiel criada, preferir morrer, já que não encontra na sua vida motivos para continuar a respirar. Interessante será notar que esta jovem, ainda que reconheça que não deve ignorar os conselhos do progenitor, se revela incapaz de contrariar o seu coração:

Olha, minha rica Olaia, bem ∫ei que he atrevimento de h?a filha para hum pai de∫prezar os ∫eus con∫elhos; porém elle ambiciozo, por naõ largar o dinheiro, ∫ó cuida nos ∫eus negocios, ∫em tratar dos meus empregos. Tenho ∫ido procurada de alguns nobres Cavalheiros, e a todos tem de∫pedido com mui de∫abridos termos: para minha de∫ventura trouxe o fado aquelle Velho, que dizem que lá nas Minas andou com elle alguns tempos, e∫te ∫ó he que lhe agrada, por ∫er conforme o ∫eu genio; onde ∫empre a ambiçaõ reina, onde ∫empre a∫∫i∫te o zelo. Já naõ tenho coraçaõ para tanto ∫offrimento; pois de mim propria e∫quecida, até a vida aborreço; e já cuido a deixaria ∫obre os fios de hum cutélo, victima de meus furores, holocau∫to dos dezejos, ∫e Fenix naõ rena∫cera nos amorozos incendios com que a vida me con∫ervaõ lembranças de Filisberto. (11)

A vontade de casar com a pessoa amada leva os filhos a enganar, sem hesitação, os pais, que querem para eles um destino diverso. Porém, esse engano não dura sempre e os folhetos que analisámos não terminam sem que toda a verdade seja revelada. Sabemos que, no século xviii, quando as filhas se unem aos pretendentes sem a devida autorização dos pais, a reação normal destes seria deserdá-las e perseguir o homem que, na sua perspetiva, enganara a donzela. Porém, muitas vezes, estas atitudes extremas não chegavam a ser postas em prática, pois os noivos viam-se na contingência de pedir perdão, nem sempre sincero, é certo, aos progenitores, acabando o casamento por se concretizar sem oposições. Resulta desta abordagem a noção de que o amor não pode ser pressionado e, embora este seja, para nós, um dado adquirido, para o homem setecentista é verdadeiramente revolucionário o facto de poder escolher o parceiro de acordo com as suas afinidades. Atrevemo-nos, por isso, a considerar que os entremezes de cordel que selecionámos são, neste aspeto, vanguardistas, pois não deixam de sublinhar as mudanças operadas no século xviii quanto aos comportamentos humanos, sobretudo os femininos, reprimidos durante demasiado tempo. A emancipação da mulher passa, pois, pelas aparentemente pequenas metamorfoses, como o livre-arbítrio na escolha da pessoa com quem se decide partilhar a vida, e os folhetos de cordel são testemunhas incontestáveis de uma revolução que estava a ser preparada, em silêncio, no recato do lar.

Mas esta transformação tem um preço: se, por um lado, encontramos personagens que vivem uma tensão provocada por discussões acerca da liberdade de escolha do parceiro, por outro, somos forçados a concluir que da vida marital estavam ausentes as paixões incontroláveis e a alegria da descoberta do outro. Deste modo, o número de folhetos que se detêm nesta fase da vida do casal é significativamente menor se comparado à quantidade de peças que optam por apresentar as personagens principais ainda solteiras e desejosas de casar. Assim, quando se realiza, o casamento constitui a felicidade suprema. É Salafrario quem o diz quando, finalmente, dá a sua mão a Ladina, no Novo, e Devertido Entremez Intitulado O Cazamento de huma Velha com hum Paralta, e a Má Vida que elle lhe Deu (s/d): “Rapariga, aqui tens e∫ta maõ, da-me a tua, aperta bem, que ni∫to con∫i∫te o verdadeiro amor.” (12)

Por este motivo, a temática em torno do matrimónio não parece displicente no universo cordelístico português, uma vez que a opção pela referência constante ao casamento decorre do elevado interesse que o homem de Setecentos nutria por todas as questões relacionadas com o enlace matrimonial. De facto, os utentes do teatro de cordel deixavam-se cativar por temáticas similares à sua vivência social e o casamento era uma das mais profícuas. Seria, por isso, o casamento – e tudo o que ele representa – aproveitado para fazer passar críticas, por vezes severas, aos vícios da sociedade de então. Por este motivo, parece não haver lugar, nos entremezes, para os casamentos venturosos. A felicidade no casamento não tinha oe o era fumente, oudo, o que, de facto, acontece em quase todos os textos que cotes ingredientes que cativavam o público do teatro de cordel: conflitos, enganos, brigas, reconciliações e festa, como forma de comemorar a vitória do amor sobre tudo – traços que espelham fielmente a realidade do Portugal setecentista. Os gostos da época não dispensavam, pois, as mais inusitadas mentiras de amor, as rocambolescas tentativas de sedução e, principalmente, um ambiente fervilhante de paixões amorosas que percorre a quase totalidade dos folhetos de cordel estudados. Quanto mais durasse esta espécie de jogo de forças entre pais e filhos, aguçado, quase sempre, por interesses materiais, mais cativado era o espetador, rendido às paixões, muitas vezes proibidas, que alimentavam a ação dramática e a precipitavam para um desfecho que, regra geral, era bastante previsível.

Neste contexto, especial atenção merecem as personagens que surgem no início dos folhetos já casadas e que protagonizam autênticas batalhas campais, comentadas por criados e vizinhos, assombrados com as agressões físicas e verbais que, sem pejo, são disferidas em todos os sentidos. Assim, os folhetos de cordel e, especificamente, os textos de teatro que aqui nos interessam, veem o casamento como

une véritable guerre, non pas en dentelles, mais dans laquelle l’homme doit vaincre la femme s’il ne veut pas être lui-même vaincu. Cette outrance révèle mieux que les phrases policées des philosophes le conflit entre les hommes et les femmes et les angoisses masculines qu’il suscite. Le couple est un des lieux premiers de cet affrontement. Or les Lumières remettent en cause le mariage traditionnel pour promouvoir une nouvelle conception du rapport mari-femme. (13)

Como podemos constatar, o conceito de amor opõe-se ao de casamento, neste contexto. Carmen Martín Gaite expõe a diferença entre amor e casamento, ao afirmar que “[u]no era el campo de la pasión, de la mentira, de la tempestad; el otro, el de la templanza y la virtud”. (14) Deste modo, “[e]l amor era deseo de libertad, de salir, de quemarse; el matrimonio, sumisión, mesura, virtud. El amor, en una palabra, se oponía a la virtud”. (15) Assim, não seria de admirar que “una vez alcanzada la meta tradicional de estas ilusiones – o sea, el matrimonio –, el amor se apagaba, tendía a evaporarse”. (16)

De facto, as relações entre marido e mulher nunca chegam a ser satisfatórias. Quando, por exemplo, o motivo da discussão tem a ver com a intenção da mulher em sair de casa para se divertir, contrariando claramente a vontade do marido, os folhetos abordam com detalhe os argumentos de ambas as partes e, no final, quase sempre a mulher se arrepende do seu comportamento e a paz volta a reinar no seio familiar. Vejamos o caso de Izabel, uma espanhola que, no Entremez do Soldado Valentaõ, de 1773, protagoniza uma acesa discussão com Varreta Sancri∫taõ, seu marido. Não faltam a esta cena a violência física e os insultos, bem como graves acusações de traição. Por este motivo, será possível considerar, com propriedade, que as duas personagens representam o dia a dia dos casais portugueses no século xviii:

Varr. Larga-me a capa.
Izab. Qeu couza he larga?
Varr. Deixa, que tenho pre∫∫a.
Izab. Qual pre∫∫a?
Varr. Será, inda que naõ queiras.           dá-lhe
Izab. Malvado Sancri∫taõ, ∫ecatavernas (sic),
          E∫ponja dos toneis, e vinagreiras,
          E∫pantalho, chupa ∫irios, pilha vélas,
          De∫∫as barbas ne∫tas unhas por in∫tantes
          Verás hum grande mólho, e com ellas
          Limparei…. mas e∫tá aqui gente.
Varr. Mulher tonta, ∫e vo∫∫ê (sic) naõ ∫e reporta
          Aventuro hum negocio, que me importa.
Izab. A ver a tua Dama vás, malvado,
          Licenciozo, em vês (sic) de Licenciado.
Varr. Naõ ∫eja taõ pezada, e taõ tirãna.
Izab. Mais vale ∫er pezada, que leviana:
          Vai-te, pérro, trapalhaõ, bandalho, mono;
          Archote dos enterros, cheira mortos,
          Dás-me zêlos a mim! que nunca os tortos
          Ramalhetes te puz ne∫ta cabeça!
          Mas eu me vingarei muito depre∫∫a. (17)

Paradoxalmente, convirá reforçar, é a vontade de casar que move a maioria das personagens numa demanda irresistível e, muitas vezes, irracional, mesmo sabendo-se que a vida conjugal seria tudo menos um mar de rosas. Fazendo apelo ao contexto sociocultural da centúria de Setecentos, poderemos, com facilidade, compreender tal atitude: o homem nasceu para casar e perpetuar a espécie. Muitos dos que não conseguiam cumprir este objetivo de vida eram olhados de revés e acabavam por ser rejeitados socialmente.

No âmbito do presente estudo, não podemos deixar de assinalar o lado menos favorável do amor, pois também ele marca a intriga dos entremezes de cordel que compulsámos, mormente no que diz respeito ao adultério e à violência doméstica.

Apesar de estas questões serem tratadas de forma mais ou menos aberta nos nossos dias, a maior parte dos folhetos sujeitos a censura prévia debatia-se com dificuldades de vária ordem no sentido de fazer aprovar um texto que pudesse, abertamente, abordar estes delicados assuntos. Importava, pois, evitar o chumbo por parte da Mesa Censória, que não admitia, por exemplo, qualquer referência à infidelidade feminina, fazendo passar a ideia de que à mulher competia ser casta, para além de ter de contrair matrimónio virgem. Assim, a lei punia com muito mais rigor a mulher adúltera, exercendo uma repressão bem mais suave sobre o homem. Este, quando na condição de marido traído, não se livrava do inevitável enxovalho público. A sanção mais frequente, no caso da mulher adúltera, era o encerramento num convento para o resto dos seus dias, o que era aproveitado por muitos dramaturgos no sentido de resolver a prevaricação feminina.

Na verdade, a temática associada ao esposo traído foi, juntamente com a que se centra nos amores ridículos de um velho, a que mais cativou o público português do século xviii. Para os homens, tomar contacto com aquelas personagens tinha um efeito catártico. O riso que arrancavam aos espetadores masculinos fazia-lhes lembrar que as situações vividas pelas personagens só aconteciam aos outros.

Se, na comédia, o tema do adultério era tratado de forma recorrente e a peça terminava com o castigo devido à mulher adúltera, no entremez aclamava-se a sensualidade das relações adulterinas resultantes da sagacidade feminina. O marido traído, por seu lado, era ridicularizado e impiedosamente vaiado, pois “a honra masculina tornou-se dependente da castidade feminina”. (18) Assim, “[o] marido enganado era não só alguém cuja virilidade era posta em causa por ser incapaz de “manter” adequadamente a sua propriedade (i.e. de satisfazer sexualmente a sua esposa), mas também por ser alguém incapaz de dirigir a sua própria casa.” (19) Por isso, competia ao marido vigiar atentamente a sua esposa para prevenir qualquer tipo de traição. A humilhação pública seria inevitável, caso a mulher se envolvesse com outro homem. É por este motivo que, no Entremez do Velho Cismatico, de 1778, o Velho tudo faz para manter a honra de sua casa, embora reconheça que a tarefa não será fácil, pois é necessário refrear as vontades da mulher e das duas filhas que conhece muito bem e, por isso, acredita que elas podem, dissimuladamente, enganá-lo. Justificando o título do folheto, o Velho surge a cismar na sua vida e conclui o seguinte:

Terrivel he a pensão de hum homem de bem; que não quer faltar ás qualidades de quem he! Vive em hum labyrintho de cousas, que de contínuo o estão affligindo. […] Os que neste mundo se julgam maiores amigos…, e mais chegados parentes, se conspiram diariamente para fazerem huma viva guerra ao coração de hum homem honrado: a propria mulher, que devia usar da sociedade, em cõmum (sic) beneficio da casa, he a que dá mais rija bateria para a arruinar: os filhos, que pela razão natural deviam concorrer para a felicidade dos pais, assim como estes concorrêram para a sua existencia, e conservação fazem o effeito de huma lima surda, que não cessam de consumir hum pobre pai…. Ah coitado de mim!…. (20)

A infidelidade é tratada nos folhetos de cordel com alguma regularidade, sobretudo no que diz respeito ao adultério masculino, muito menos recriminado socialmente que o cometido pela mulher. Assim, a formalização do crime de adultério ocorria unicamente quando era o marido o ofendido. Curiosamente, Verney considera que um dos motivos que contribuíram para a ocorrência do adultério em Setecentos se prende com a ignorância das mulheres que não são capazes de manter uma conversação interessante com os maridos:

Persuado-me que a maior parte dos homens casados que não fazem gosto de conversar com suas mulheres, e vão a outras partes procurar divertimentos pouco inocentes, é porque as acham tolas no trato; e este é o motivo que aumenta aquele desgosto que naturalmente se acha no contínuo trato de marido com mulher. Certo é que uma mulher de juízo exercitado saberá adoçar o ânimo agreste de um marido áspero e ignorante, ou saberá entreter melhor a disposição de ânimo de um marido erudito, do que outra que não tem estas qualidades; e, desta sorte, reinará melhor a paz nas família. (21)

Por seu lado, a prática da violência doméstica sobre a mulher ajudaria a prevenir eventuais traições. Um pouco por toda a Europa multiplicam-se os casos de violência conjugal e o nosso país não é exceção. Apesar de a civilidade ser um dos bastiões de Setecentos, o elevado número de atrocidades cometidas entre os membros do casal poderá levar-nos a pensar que muita coisa havia ainda a fazer neste campo. As injúrias e os maus tratos físicos eram comuns e não atingiam apenas as classes mais desfavorecidas. Famílias de condição social mais elevada acabavam por padecer dos mesmos problemas. Alguns folhetos de cordel ilustram esta realidade. Tomemos como exemplo o Novo Entremez da Doutora Brites Marta, editado em 1783. Ambrozio, um dos pretendentes de Brites, justifica o facto de muitos homens terem de recorrer à violência física sobre as mulheres como forma de corrigir o seu comportamento desajustado. Atentemos nas acusações que Ambrozio imputa às mulheres e que nos permitem aferir o conceito de recato e obediência femininos do ponto de vista masculino:

Do que ouvi, / Dos homens em dezabono; / A Mulher he ∫empre a cauza, / Tem hum génio do Demonio; / Ellas ∫aõ as que os incitaõ / Com ∫eus endiabrados módos. / A faltarem-lhe ao re∫peito, / Quando levaõ bons e∫toiros: / Se algumas vezes ∫e enfadaõ / Per ∫ecula ∫eculorum: / He taõ forte a gritaria / Tanto motim, tanto e∫trondo, / Até lhe querem meter / Os dedos bem pelos olhos: / Já pedindo-lhe, o que querem, / Sem haver menor encontro, / Os çapatos (sic) de Setîm (sic), / Fivella que finja de ouro; / Polvilhos côr de carunxo (sic), / Para a cintura relojo: / Pérolas, fitas, e flores, / Carmim do mais e∫peciozo; / Sinaes de taco taraco. / Pois ∫e he amiga de bolos, / Bem pódem os Confeiteiros / Deitarem-∫e de remolho, / Que tem grande renda, á cu∫ta / Dos pobres maridos tôlos. / Se por de∫graça he tomi∫ta, / Que tem grande amor ao cópo, / vai empenhar nas tavernas / os lançois, e os tra∫tes todos; / elles vendo-∫e enfadados, / uzaõ por ∫eu dezafogo, / a dar-lhe zape catrape, / alli couce, acolá foco, / zus catruz, quem merca os fuzos / chegando-lhe a roupa ao couro. […] Mulheres ha taõ crianças, / e com juizo taõ pouco, / que ∫e acazo naõ ∫e en∫inaõ / prégaõ facilmente o mono. (22)

Apesar da violência exercida pelos maridos, as mulheres acabam por perdoar as atrocidades e tudo termina bem, pois, para elas, a situação não é senão normal.

A terminar, interessar-nos-á uma referência, ainda que breve, às personagens que dão vida às peças analisadas. A maior parte dos dramaturgos optou por condicionar o comportamento das personagens a clichés preexistentes. Deste modo, emergem dos nossos entremezes personagens que, na sua maioria, são fixas e das quais se espera um comportamento preciso. Há, pois, lugar à participação de velhas apaixonadas, mães e sogras; de velhos rendidos aos encantos das inocentes raparigas e chichisbéus que as acompanham para todo o lado; de um conjunto ainda mais vasto de personagens secundárias facilmente identificadas pelo público e que ajudam a compor as intrigas que, de forma geral, versam, como vimos, o tema do amor e suas inevitáveis consequências. A unir todo este elenco estará, pois, o facto de, direta ou indiretamente, o comportamento das personagens contribuir para a construção de relações, nem sempre amistosas, conforme sustenta o título da comunicação. Acreditamos que o presente estudo, por superficial, não seja suficiente para desvendar o complexo mundo das relações humanas, sobretudo numa época pouco conhecida. Cremos, contudo, que fomos capazes de, pelo menos, “sugerir até que ponto tudo isto é endiabrado”, para retomar as palavras de Ortega y Gasset. (23)

Na generalidade dos folhetos estudados, dois pares de personagens dominam a trama central: a dama e sua criada, por um lado, e o galã acompanhado por um gracioso, que é seu criado, por outro. E, logicamente, os pares amorosos estão constituídos: a dama e o galã; a criada e o gracioso.

Começando pelas personagens femininas, importa frisar que as suas angústias, o comportamento pautado por excessos decorrentes, sobretudo, da não correspondência amorosa ou das imposições de terceiros que coartam a sua felicidade, tornam a intriga mais interessante e conseguem surpreender mesmo aqueles que veem os entremezes como expressões literárias com formatos repetitivos. Move-as, sobretudo, o impulso sexual, traduzido num desejo forte de se relacionarem com o sexo oposto e na busca, a todo o custo, do casamento como forma de apaziguar essa vontade.

No que à mulher solteira diz respeito, convirá não esquecer que o seu comportamento é condicionado por valores que, apesar de pouco usuais para a época, conduzem à livre escolha do futuro marido. Deste modo, o sentimento é colocado num patamar superior e tratado como um verdadeiro objetivo de vida a seguir, indo, inclusivamente, contra o próprio progenitor. Por esse motivo, e à semelhança do que se passa nos dias de hoje, a rapariga celibatária evidencia um gosto considerável pela sociabilidade, pois sabe que esse é o único caminho para conhecer outras pessoas e poder, assim, fazer escolhas mais responsáveis quando tiver de se entregar a um homem que pretende amar para a vida. No entanto, a atitude que as mulheres assumem, na maioria dos documentos compulsados, revela que as mesmas têm consciência de que pertencem ao chamado sexo fraco e, por este motivo, terão de estar muito mais atentas às investidas dos homens:

O no∫∫o ∫exo na∫ceu fragil, fraco, e ∫ugeito (sic) ao engano: os homens que ∫e reconhecem com ∫uperioridade mais fortes, vegião (sic) a no∫∫a fraqueza, e a maior parte delles o ∫eu intento he arruinar-nos, lembrão-∫e de expre∫sões a (sic) mais fortes, per∫ua∫ivas as mais ∫ublimes, tudo a fim de nos capacitarem de que são verdadeiros os enganos, que elles occultão; ∫e huma vez lhe damos credito, de∫graçadas de nós, a no∫∫o pezar conhecemos depois o que de∫ejariamos conhecer antes. (24)

Deparamos, no entanto, com mulheres que não se assumem como inferiores aos homens. Pelo contrário, revelam ser capazes de dispor das vidas deles a seu bel-prazer. São, regra geral, mulheres pretendidas por muitos homens, a quem dão esperanças para depois lograrem. No entanto, acabam presas sentimentalmente a quem de início desconsideraram. O Entremez Intitulado Os Amantes Amarrados, ou A Namorada da Moda, de 1784, constituiu um exemplo feliz do que afirmamos. Anarda revela à criada o modo como trata os homens que de si se aproximam:

Pois que queres tu que eu faça?
∫e me per∫egue huma tropa,
de frangaos (sic) arrepiados
que me naõ largaõ a porta.
Na mi∫∫a, ∫aõ os primeiros
que a minha vaidade encontra,
no pa∫∫eio, na comédia,
me a∫∫istem a toda a hora:
∫e a hum cortejo; já outro
∫e deze∫pera e ∫e amôa (sic);
∫e a outro faço hum aceno,
já doutro huma carta e∫toira,
quem me põem a alma á banda,
com mil palavras zellozas:
e a∫∫im, o que faço; a todos
os trato da me∫ma forma
mas com fiança maior,
de mim, nenhum delles logra. (25)

Verifica-se, pois, que, com o avançar do século xviii, o comportamento das jovens começa a mudar: o seu aprisionamento tem os dias contados. Com a moda das Assembleias, (26) as raparigas veem nelas uma forma de saírem de casa e conhecerem pessoas do sexo oposto. A emancipação da mulher passa também por aí: é nestas reuniões que ela começa a falar, a estruturar o seu pensamento, e, para isso, tem necessidade de se instruir, de conhecer outras pessoas, de sair de casa, isto é, de construir o seu próprio espaço de liberdade. Porém, esta situação preocupa cada vez mais os pais, que fecham as filhas em casa ou tentam educá-las num convento, procurando salvaguardar a honra das descendentes. De facto, as jovens solteiras, sobretudo as aristocratas e burguesas, eram tidas, pelos seus pais, como um bem precioso que urgia proteger dos pretendentes considerados pouco recomendados.

No entanto, todos os cuidados que os pais tomavam com as suas descendentes acabavam por ter um efeito negativo: as moças, desconhecedoras do mundo e ávidas de novas experiências, deixavam-se seduzir pelo primeiro homem que as abordasse. Apesar de a censura tentar afastar este revés social das obras publicadas, temendo a sua propagação, os folhetos de cordel conseguiram fazer passar algumas referências à realidade.

A mulher casada plasmada nos folhetos de cordel tinha poucos motivos para sorrir. Se a rapariga solteira chama a si as atenções de muitos folhetos, a mulher casada compete com ela em textos que traduzem uma visão sombria do casamento. Levada a casar muito nova, por vezes com menos de 15 anos, (27) enfrenta aquele novo estado iludida pelo amor que sente, mas sem nenhuma experiência de vida nem conhecimento cabal do seu cônjuge. Não será, pois, de admirar que sucumba às solicitações de outros homens, quando descobre o verdadeiro caráter mesquinho e limitado do marido, associado, muitas vezes, à sua provecta idade, o que potencia a luxúria da mulher. Assim, a voluptuosidade feminina é fundamental para o desenvolvimento da intriga das peças que elegem o casamento desigual como temática central. De facto, com o matrimónio, desfaz-se toda a emoção decorrente de uma longa fase de conquista amorosa mais ou menos atribulada. Passam rapidamente ao esquecimento, por esta via, as infindáveis juras de amor, bem como as peripécias associadas aos encontros e desencontros dos pares de namorados.

A mulher casada não terá, portanto, uma vida aprazível, pois padece às mãos daquele que, supostamente, a deveria amar, até que a morte os separe… Se, na verdade, existem muitas mulheres que se revoltam contra seus maridos e reclamam para si o direito a serem livres, deparamos com algumas que se sujeitam totalmente ao esposo, mau grado o facto de padecerem bastante, em silêncio. É o caso de Lizarda que, no Novo, e Devertido (sic) Entremez Intitulado A Noiva Prudente, e o Marido Estragador, de 1787, apesar de saber que seu marido é um devasso, afirma:

 […] mas que fazer devo? Publicar o mao portamento de meu marido? I∫∫o naõ, morrerei embora á força de di∫go∫tos, a indigencia, a fera indigencia me oprimirá; mas minha lingoa (sic) já mais (sic) dirá coiza, em que mo∫tre o motivo do meu martirio. (28)

As constantes discussões com o marido, que tenta, por tudo, manter a mulher fechada em casa, levam-na a odiá-lo e a arrepender-se amarguradamente do dia em que casou. Consequentemente, no entanto, as personagens femininas dos folhetos são bem distintas e opõem-se à imagem tradicional da mulher que acima tratámos. São esposas insubmissas, contestatárias e, sobretudo, reclamam certas liberdades que os maridos não estão dispostos a conceder. (29) Representam, assim, um corte bastante significativo com a ordem anteriormente estabelecida sobre o comportamento feminino. São, portanto, estas as mulheres que surgem nos folhetos a contrariar as leis tradicionais que estabeleciam a superioridade do marido. É o que observamos no folheto A Mulher Reformada, e o Marido Satisfeito, de 1785: a Mulher fala com a Vizinha acerca da dificuldade em sujeitar-se ao marido, vendo no casamento uma prisão:

Antigamente, alguma razaõ tinha,
Naõ me lembrava bem que era cazada,
Quando andava em galhofas engolfada,
Naõ ha coiza peor (sic) que os cazamentos,
Que ∫aõ traçados dos ajuntamentos,
Pois tem a liberdade hum certo mel,
Que ainda que a mulher ∫eja fiel,
A Sancta, e conjugal obrigaçaõ,
Muito, e muito lhe cu∫ta a ∫ubjeiçaõ. (30)

As discussões entre marido e mulher prendiam-se, fundamentalmente, com a vontade desta de promover em sua casa assembleias, de se vestir e pentear à moda, de passear, ou de frequentar o teatro e bailes. Com todos estes desejos latentes, a mulher descura as lides domésticas, por ela consideradas escravatura. Invariavelmente, todos (31) os folhetos terminam da mesma forma: a mulher acaba por se arrepender do que disse ou fez, pedindo perdão ao marido, que sempre a desculpa. É evidente que esta atitude da mulher tem a ver com a ameaça do marido que apontava para o ingresso forçado num convento. No entanto, os argumentos usados pelas esposas são interessantes porque reveladores da mentalidade da época.

A fim de perpetuar a paz familiar e proporcionar aos filhos uma estabilidade emocional capaz de garantir a sua sanidade mental, a mulher rebaixa-se perante o esposo, desistindo, muitas vezes, dos sonhos que foi alimentando ao longo do tempo.

Mas nem sempre isso acontece, o que constitui uma prova viva de que a emancipação feminina não será unicamente levada a cabo pela rapariga solteira.

A figura da mulher apaixonada por um jovem, apesar da sua provecta idade, é colocada pelo dramaturgo ao serviço do cómico. À semelhança do que acontece com o homem idoso dado aos amores, também a mulher que não sabe ocupar o lugar que a sociedade determinou para as pessoas mais velhas é ridicularizada. No Novo, e Devertido Entremez Intitulado O Cazamento de huma Velha com hum Paralta, e a Má Vida que Elle Lhe Deu (s/d), Salafrario, o criado, confessa o seu amor por Ladina, mas previne-a: “Tu naõ és velha, que ∫e o fo∫∫es naõ olharia para ti […].” (32)

Este desprezo pelas mulheres mais velhas, apesar de não ser regra geral, é característico de alguns homens que, por não abraçarem a peraltice, nem desejarem uma mulher que os sustente, podem entregar-se livremente ao amor, aborrecendo, por isso, as mulheres mais velhas.

Mas, no folheto que acabámos de citar, tal não sucede. D. Corcomida não cabe em si de contente por ter um suposto namorado, bastante jovem, que prometeu casar com ela. A sua felicidade é de tal forma evidente que a velha senhora não hesita em oferecer ao amado muitas prendas: “Por taõ amavel noticia te quero dar huma prenda: e∫te coraçaõ de brilhantes he para a prizaõ da camiza: eu quero que o meu Peralta ∫eja muito ca∫quilho; tudo quanto po∫∫uo para o meu filho ha de ∫er.” (33)

Porém, quando descobre que o namorado a trai com a própria neta, ameaça retirar-lhe o dote e pretende que Aurelio lhe devolva as prendas que dela recebera. De acordo com as leis da época, a atitude de D. Corcomida é perfeitamente justificada, uma vez que a neta iria tomar o seu lugar no matrimónio com Aurelio e este desrespeitou as promessas de casamento que fizera anteriormente. Assim, a quebra dos esponsais poderia ser, nos casos mais extremos, punida com pena de prisão, para além de provocar irreparáveis danos na reputação da noiva traída.

No final da peça, no entanto, após a intervenção dos criados, a velha dá conta do seu erro, arrepende-se das ameaças que fez e tudo acaba bem.

Merecem igualmente referência as diversas categorias de personagens masculinas que compõem o elenco das peças de teatro que cotejámos e que poderemos reunir em dois grupos. Por um lado, as personagens ociosas, que têm como principal objetivo de vida a conquista de uma mulher cujo dote lhes permitirá uma vida desafogada. Desprovidas, na maior parte das vezes, de qualquer sentimento puro para com as pretendentes, tudo fazem para alcançar os seus intentos. Neste rol encontramos sobretudo os peraltas, normalmente jovens, com uma vida social bastante ativa, que frequentam as assembleias e ali se encontram com as raparigas que tentam seduzir, o que parece constituir uma ameaça à ordem estabelecida devido ao seu comportamento libertino.

O peralta é, nos folhetos que consultámos, (34) sempre odiado pelos mais velhos, que se opõem ao casamento destes com as suas filhas. O Novo Entremez Intitulado A Sem Seremonia (sic), com que os Homens Enganam as Raparigas, de 1787, apresenta-nos um velho pai preocupado com o futuro da filha que ama um peralta, salientando este facto como sendo o grande mal da época que urge sanar:

E que ha de huma louca filha querer de∫truir, e abater, aquelle me∫mo ideficio (sic), que o Pai com o maior trabalho tem fabricado para a ∫olida ezi∫tencia (sic) do ∫eu credito, que lamentavel de∫graça; as filhas loucas do ∫eculo corrompido, e e∫tragado, o ∫eu querer he a ∫ua vontade, ∫arraõ (sic) os ouvidos á razaõ, e aquellas vozes que ∫e derigem (sic) a de∫viallas das bordas do precepicio (sic), ellas as de∫prezaõ, que fadigas, que au∫teros trabalhos naõ cu∫ta a criaçaõ de huma filha? (35)

No entanto, poucas são as raparigas que dão ouvidos aos pais. Cegas pelo amor, acreditam que os amantes peraltas serão incapazes de as enganar.

Mas os entremezes sobrevalorizam os rapazes solteiros, que se apresentam diante dos nossos olhos como seres apaixonados que tudo fazem para lograr a mulher dos seus sonhos. A figura do jovem solteiro surge, na maior parte dos folhetos estudados, caracterizada pelo forte interesse que manifesta no casamento com uma mulher. A vontade de casar é tão pungente que raramente olha a meios para o conseguir, mesmo que as condições sejam adversas.

O homem solteiro assume-se, na generalidade das vezes, como um galã cujo charme – real ou apenas desejado – é usado na tentativa de conquistar a mulher por quem nutre algum tipo de interesse, como é o caso de Felisberto que, no Novo Entremez Intitulado Os Amantes Arrufados (s/d), traça de si mesmo o seguinte perfil: “Sou valente ∫oldado de Cupido / Explorador in∫?gne das janellas, / E quãdo as Damas bellas / A cupidal contenda de∫afio, / Tiro ligeiro com donaire, e brio […].” (36)

Sintetizando, poderemos afirmar que o rapaz solteiro é uma das personagens mais importantes dos folhetos analisados. Nas suas páginas encontramos jovens apaixonados que tudo fazem para conquistar a mulher dos seus sonhos, abominando o dinheiro que um eventual casamento por conveniência lhes poderia facultar. O amor leva-os a solicitar a ajuda dos prestáveis criados. Desta forma, unindo esforços, conseguem convencer pais teimosos ou tios severos a autorizar um casamento que, à partida, parecia impossível.

Porém, nem todos os homens agiam daquela forma. Alguns assumiam-se como verdadeiros galãs e não tinham pejo em ludibriar as inocentes raparigas que, acreditando nas suas palavras, julgavam ter encontrado o homem dos seus sonhos. As indefesas moças rapidamente se apercebiam do seu erro e maldiziam a sorte que lhes coubera.

Apesar de tudo, a conduta da maior parte das personagens masculinas é pautada pela cega obediência ao amor, transformando a intriga das peças de teatro em verdadeiros contos de fadas.

O amor que os rapazes solteiros sentem é verdadeiro e é nele que recolhem as forças necessárias para contornar os obstáculos que têm de enfrentar, como o das personagens mais idosas que tentam garantir os conceitos tradicionais de honra e de decência, controlando as relações amorosas dos que lhes são sujeitos. Regra geral, o pai de família é, nos textos de cordel, um viúvo a quem compete cuidar sozinho do futuro dos descendentes. Esta situação faz eco do que se passava, de facto, na sociedade setecentista, na qual, como vimos, o casamento se realizava cada vez mais tarde. Por este motivo, Joaquim Ramos de Carvalho refere-se a um “sistema perfeito” (37) em que

[a] elevada idade à data do casamento faria com que, quando a geração seguinte ambiciona casar, a geração anterior está próxima do fim útil da vida ativa. O número de casamentos em que um dos noivos, ou ambos, são órfãos de um dos progenitores é muito elevado. Isso parece indicar que a esperança média de vida e a idade média do casamento são variáveis interligadas de forma lógica. (38)

Por isso, em muitos folhetos, a filha queixa-se e lamenta o facto de a mãe não estar viva, tendo de se sujeitar à vontade do pai que, na maior parte dos casos, é quem dita o destino dos descendentes. Aliás, são poucas as mães chamadas a pronunciar-se sobre as uniões dos filhos e só o fazem quando são viúvas ou têm maridos impossibilitados de, publicamente, manifestarem a sua vontade. Saliente-se que, muitas vezes, este poder é exercido por tutores ou curadores: tios, irmãos ou outros familiares, no seguimento daquilo que, desde a época romana, tinha sido prática corrente.

A sociedade setecentista conferia ao pai a autoridade máxima sobre o governo do seu lar. Esta conceção acaba por refletir a autoridade de Deus relativamente a todos os homens. Investido de tal poder, o pai seria o responsável máximo pela vida dos filhos, mesmo quando estes cresciam e desejavam casar. Na mesma esteira, os filhos deviam ao progenitor toda a sua existência, pelo que eram obrigados a amá-lo e a obedecer-lhe em tudo, inclusive nas suas escolhas matrimoniais, o que, por vezes, se tornava impossível, como sucede no Entremez Intitulado O Castigo da Ambiçaõ, ou O Velho Avarento, Enganado, e Desenganado (1771), quando Arminda, não poupando os pais, acusa-os de serem os principais responsáveis pela desobediência dos seus descendentes:

Ah Pais, que vós ∫ois a cauza de que as filhas o recato percaõ, faltando aos preceitos, e ao paternal agrado; pois quereis ao vo∫∫o go∫to unir os e∫treitos laços do hymeneo ∫endo o motivo talvez de fins de∫graçados! Avarentos, orgulhozos, bu∫cais ás filhas e∫tado contra ∫eu go∫to, fazendo, que dentro de poucos annos ∫e converta em dura guerra o que foi da paz pre∫agio (sic). (39)

As palavras da jovem rapariga são justificadas pelo facto de seu pai querer, a todo o custo, casá-la com um idoso cavalheiro de setenta anos. Mas o coração da pobre filha está preso a outro homem bastante mais jovem e, supomos, atraente. Este, contando com o apoio incondicional do criado, trata de entrar em casa de Arminda, disfarçando-se de médico e, assim, consegue enganar o velho avarento e salvar a moça do seu infeliz destino.

No entanto, os pais raras vezes têm sucesso e acabam por reconhecer o seu erro ao tentarem sujeitar às suas vontades o destino dos mais novos que deles dependem.

Nem sempre, porém, os homens idosos assumem esta postura. Muitas vezes, dominados pela paixão, tentam seduzir as jovens mulheres, quase sempre criadas que, invariavelmente, os ludibriam, como provam os seus desabafos: “Antes ∫olteira viver, / Do que hum ginja receber”; (40) “[…] vale mais hum Peralta, o mais pobre, do que hum Velho, o mais rico.” (41) Os versos transcritos traduzem a visão que, nos folhetos de cordel, é dada do homem idoso que se perde de amores por uma rapariga. Em termos sociais, a relação de um homem mais velho com uma jovem era considerada ilícita, sobretudo quando é ele quem detém uma posição socioeconómica mais elevada. Ora, os folhetos estudados revelam com frequência esta situação, quando deparamos com um velho que deseja casar com a jovem criada. Completamente sujeita ao amo, a criada pouco poderia fazer para resistir às investidas daquele. Não esqueçamos que a criadagem não tinha qualquer poder, uma vez que era dependente economicamente e, por tradição, o amo dispunha a seu bel-prazer do corpo das mulheres a quem dava emprego. Para além disso, a extrema juventude das criadas e a consequente ingenuidade tornavam-nas ainda mais vulneráveis aos acometimentos dos amos.

Estranhamente, os folhetos de cordel não espelham esta realidade. Pelo contrário, as criadas agem com autonomia e facilmente se libertam dos amos, a quem enganam com frequência, o que nos leva a concluir que a ingenuidade associada às jovens criadas é unicamente aparente, já que muitas eram calculistas e sabiam aproveitar-se dos velhos amos.

Apesar da diferença gritante de idades entre pretendente e amada, bem como da usual discrepância ao nível da condição social de ambos, os velhos namorados consideram perfeitamente normal as suas preferências amorosas.

Tanto o velho apaixonado por uma jovem como o pai ou o tutor são tratados sempre de forma ultrajante, ridicularizando-se a sua maneira de pensar e o seu aspeto. Fortemente arraigados à tradição, constituem um obstáculo a todos os que querem viver uma vida moderna e livre de preconceitos. Quando se apercebem do seu comportamento ridículo, o arrependimento é inevitável.

Merece uma última nota o par de personagens subalternas, dignas dos favores do público, a quem já nos referimos anteriormente: a criada e o gracioso. Fazendo parte do dia a dia das famílias burguesas retratadas nos folhetos de cordel, os criados foram sempre muito próximos dos amos solteiros. Aproveitando esta realidade, o dramaturgo coloca ao seu serviço indústrias que idealizam e concretizam, servindo expedientes cómicos, completados por intervenções inusitadas de pendor brejeiro que suavizam os momentos de tensão gerados entre as personagens. Por isso, acabam por ser os grandes impulsionadores da intriga ao terem a capacidade de solucionar o que parece irresolúvel. A presença do criado gracioso nas peças estudadas é colocada ao serviço do cómico, ao “tomar a seu cargo a parte galhofeira da peça, fazer rir o público com a sua chalaça por vezes um tanto pesada.” (42) Por isso, “[q]uando aparecia o gracioso, já se sabia de antemão o que ia dizer e fazer, aquilo que se lhe podia exigir: fazer rir, não importava como e à custa de que trocadilhos grosseiros, casar no fim com a criada da primeira dama.” (43) Figura imprescindível na maior parte dos folhetos de cordel, o gracioso não esgota a sua intervenção ao imprimir um cunho cómico ao texto. À semelhança do aproveitamento que dele fez António José da Silva, também cada um dos autores dos entremezes e pequenas peças de teatro setecentistas “se da boca do gracioso fez sair muita graça grosseira, também nela pôs comentários as mais das vezes justos e onde despontava uma ligeira crítica de cuja pretendida ousadia ele foi a primeira vítima”. (44)

No Novo, e Devertido Entremez Intitulado Nem por muito Madrugar Amanhece mais Cedo (s/d), a intervenção inicial de Pa∫coal, criado de Hortencio, revela, com clareza, as funções da criadagem ao serviço dos amos, nem sempre agradáveis:

Naõ ha vida mais di∫graçada, do que a de hum criado de ∫ervir. Todos os Officios e∫taõ perdidos. Trabalho, e mais trabalho: porém, i∫to de paga, tal dia fez hum anno. Sim ∫enhores. Hum Amo nos tempos de agora, em tendo hum criado de ∫ervir, pen∫a, que tem hum jumento, com perdaõ de Vv. mm. Naõ ha ocupaçaõ em que o naõ meta; mas todas de pouca honra, e menos proveitos. Naõ os fazem elles trabalhar na nora; mas fazem anda-los n’uma roda viva. Pois, ∫e elle tem amores…..? Entaõ logo querem que ∫ejaõ bons….. &c. I∫to he; que dem (sic) bem o recado: e ∫e naõ tem e∫∫e pre∫timo, lançaõ-no de almargio. Eu fallo por mim. Meu Amo morre por e∫ta filha do Doutor Tiburcio. O mizeravel naõ lhe póde fallar pela cautella do Pai, que a guarda, como a menina dos ∫eus olhos. Quer meu Amo á força, que eu lhe entregue e∫ta carta, em que lhe explica, o muito que lhe quer. Eu tenho ideado huma, que ∫e fico bem, tenho muito que contar: certamente ∫ou hum grande homem. Forte premio me e∫pera: meu Amo he liberal, como a ponta de hum e∫peto ∫em carne: porém Eu naõ ∫ou intere∫∫eiro: ba∫ta, que lhe ∫aque o relojo, que he galante peça. Vamos a procurar o tal Doutor, e ver, ∫e entrego a carta; pois, quando naõ tire outro fruto, ∫empre me farei conhecido da cozinheira, que he forte delanbida (sic). Vamos depre∫∫a, antes que ∫e faça noite, para ver ∫e acho alguma introducçaõ. (45)

As queixas costumadas prendem-se com o excesso de trabalho e com a falta de pagamento por parte dos amos, que não respeitam os criados. No entanto, no que toca aos amores, contam com a ajuda incondicional destes. Mas os seus préstimos são interesseiros: sabem que, ao favorecerem a união dos amos, irão receber uma gratificação que permitirá a sua independência monetária. Poderão igualmente casar e serem donos da sua própria casa, um sonho acalentado por muitos, mas que poucos concretizavam. Situação semelhante é operada no que diz respeito à construção da criada. Havia, por isso, um problema que parecia toldar a felicidade das criadas apaixonadas: elas estavam impedidas de casar por falta de dote. Só quando as suas amas casassem, estas poderiam fazer o mesmo, pois receberiam o necessário ao enlace. Não esqueçamos que, para as pessoas com parcas condições económicas, casar representava uma despesa que nem sempre era suportável.

No momento em que somos obrigados a silenciar-nos, temos perfeita consciência de que muito mais poderíamos ter dito se tivéssemos ao nosso dispor tempo e espaço para, com detalhe, tratarmos todos os aspetos contidos na totalidade do corpus que reunimos. A riqueza de cada texto é imensa e um trabalho exaustivo poderia fazer luz sobre outros aspetos que nos abstivemos de considerar. Resta-nos a esperança de, um dia, revisitarmos os nossos escritos e continuarmos a prazenteira viagem ao mundo do teatro de cordel.

À semelhança de Taralhão, o criado que auxilia o seu amo nos negócios do coração, que, no final do Novo Entremez Intitulado O Peralta Vaidoso e o Velho Presumido, pede aos espetadores de algum erro passado o perdão para merecer a honra do seu agrado, também nós nos escusamos da abordagem ligeira ao profícuo tema dos amores e desamores nos entremezes portugueses de cordel, sabendo, porém, que um dia teremos de o revisitar, pois, num ou noutro momento, vai o diabo em casa do alfacinha.


Notas


(1) Cf. Ana Margarida Ramos, Os Monstros na Literatura de Cordel Portuguesa do Século xviii, Lisboa, Edições Colibri, 2009.

(2) Cf. José Oliveira Barata, História do Teatro em Portugal (Séc. xviii) – António José da Silva (O Judeu) no Palco Joanino, Algés, Difel, 1998.

(3) Denis de Rougemont, Os Mitos do Amor, Lisboa, Livros Horizonte, 2001, p. 9.

(4) Entremez Intitulado Industrias de Lesbina, Lisboa, Na Officina de Francisco Sabino dos Santos, m.dcc.lxxiii, Com licença da Real Meza Cen∫oria, p. 6-7.

(5) Novo, e Divertido Entremez Intitulado Os Tres Cazamentos Gostozos, Lisboa, Na Officina de Francisco Borges de Sousa, Anno de 1792, Com licença da Real Meza da Commi∫∫aõ Geral ∫obre o Exame, e Cen∫ura dos Livros, p. 7.

(6) Ibidem.

(7) Novo Entremez Intitulado A Doente Amoroza, e o Cirurgiam Amante,Composto por Joaquim Sergio de Oliveira (sem referências), p. 21. A probabilidade de este folheto pertencer ao século xviii é elevada, se tivermos em conta que o editor Francisco Borges de Sousa exerceu a sua atividade entre os anos de 1781 e 1792 (cf. http://www.europeana.eu/ portal/record/00101/C1839D64B9F0E108AF0F0800B4927E0C3C393626.html?start=9, consultado em 10 de outubro de 2012).

(8) Novo Entremez Intitulado O Pai Zeloso da Honra, Lisboa, Na Officina de Lino da Silva Godinho, Anno m.dcc.lxxxviii, Com licença da Real Meza da Commi∫∫aõ Geral ∫obre o Exame, e Cen∫ura dos Livros, p. 2.

(9) Entremez Novo da Castanheira, ou A Brites Papagaia, Lisboa, Na Officina de Filipe da Silva e Azevedo, Com Licença da Meza do Desembargo do Paço, s/d, p. 5. Para Luiz Francisco Rebello, o autor da peça é José Caetano de Figueiredo (Breve História do Teatro Português, Lisboa, Publicações Europa-América, 2000, p. 83). O investigador destaca ainda uma edição de 1785, no seguimento das considerações de Albino Forjaz de Sampaio. Este último acrescenta duas edições, datadas de 1792 e 1798. Possuímos a edição mais recente.

(10) Novo Entremez Intitulado O Velho Prezumido, e Enganado, e por fim Chorando, e Vendo,Lisboa, Na Officina de Antonio Gomes, Com licença da R. Meza da Com. Geral ∫obre o Ex. E Cen∫. dos Livros, s/d, p. 6.

(11) Entremez Intitulado O Castigo da Ambiçaõ, ou o Velho Avarento, Enganado, e Desenganado, Lisboa, Na Offic. de José da Silva Nazareth, Anno de mdcclxxi., Com Licença da Real Meza Cen∫oria, p. 3-4.

(12) Novo e Divertido Entremez Intitulado O Cazamento de huma Velha com hum Peralta, e a Má Vida, que Elle Lhe Deu, Lisboa, Na Officina de Domingos Gonsalves, Com licença da Real Meza Cen∫oria, s/d, p. 15.

(13) Dominique Godineau, « La femme », in Michel Vovelle (dir.), L’Homme des Lumières, Paris, Éditions du Seuil, 1996, p. 438.

(14) Carmen Martín Gaite, Usos Amorosos del Dieciocho en España, Barcelona, Editorial Lumen, 1981, p. 183.

(15) Ibidem.

(16) Ibidem.

(17) Entremez do Soldado Valentaõ, Lisboa, Na Officina de Francisco Sabino dos Santos, m.dcc.lxxiii, Com licença da Real Meza Cen∫oria, p. 3.

(18) Sara F. Matthews Grieco, “O corpo, aparência e sexualidade”, em História das Mulheres – do Renascimento à Idade Moderna, Volume 3, Porto, Edições Afrontamento, 1994, p. 114.

(19) Ibidem.

(20) Entremez do Velho Cismatico, Lisboa, Na Officina Luisiana, Anno de m.dcc.lxxviii, Com licença da Real Meza Censoria, p. 1.

(21) Luís António Verney, Verdadeiro Método de Estudar, Volume v, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1952, p. 126.

(22) Novo Entremez da Doutora Brites Marta, De Pedro Antonio Pereira, Comico Portuguez, Lisboa, Na Officina de Domingos Gon∫alves, Anno 1783, Com licença da Real Meza Cen∫oria, p. 14-15.

(23) Ortega y Gasset, Estudos Sobre o Amor, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 2002, p. 244.

(24) Novo Entremez da Doutora Brites Marta, p 15.

(25) Entremez Intitulado Os Amantes Amarrados, ou A Namorada da Moda, Lisboa, Na Offic. de Francisco Borges de Sousa, Anno de m.dcc.lxxxiv, Com licença da Real Meza Cen∫oria, p. 9.

(26) De acordo com Maria Alexandre Lousada, “[t]em-se sugerido que as origens do salão se podem encontrar nas reuniões da corte, convocadas com uma certa regularidade pelo monarca, onde se dançava, ouvia música e jogava.” (“Novas formas: vida privada, sociabilidades culturais e emergência do espaço público”,in História da Vida Privada em Portugal, Lisboa, Temas e Debates, 2011, p. 443).

(27) No entanto, alguns folhetos fazem passar a ideia de que as raparigas com menos de 21 anos são muito novas para casar, como sucede com o Novo Entremez Intitulado O Poeta Pobre Novo Entremez Intitulado O Poeta Pobre, Lisboa, Na Officina de Domingos Gonsalves, Anno mdcclxxxiv, Com licença da Real Meza Cen∫oria, quando o Poeta conversa com Brites acerca de Maricas, na p. 13:
Poet. […] devia chamar-∫e Roza; porque tem bellas feiçoés.
Mar. Saõ os olhos de V. m.
Poet. He cazada?
Brit. Cazada! Ella ainda naõ fez os deza∫ete (sic).
Poet. Pois a mim me parece que e∫tá nos ∫eus vinte e hum.

(28) Novo, e Devertido (sic) Entremez Intitulado A Noiva Prudente, e o Marido Estragador, Lisboa, Na Offic. de Domingos Gonsalves, Anno mdcclxxxvii, Com licença da Real Meza da Commi∫∫aõ Geral ∫obre o Exame e Cen∫ura dos Livros, p. 3.

(29) Maria José Moutinho Santos refere, a este propósito, que “[t]ais posturas não podem […] ser tratadas à letra por demasiado evoluídas para a maioria da sociedade, mas serão já prenúncio de uma certa mudança de mentalidade, ao nível das camadas mais cultas”, O Folheto de Cordel – Mulher, Família e Sociedade no Portugal do Séc. xviii (1750-1800), Dissertação de Mestrado em História Moderna, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1987, p. 61.

(30) A Mulher Reformada e o Marido Satisfeito. Obra Alegre, Moral, e Recreativa, Lisboa, Na Offic. de Antonio Rodrigues Galhardo, Impre∫∫or da Real Meza Cen∫oria, Anno 1785, Com licença da me∫ma Real Meza, p. 14.

(31) Analisando todos os folhetos que possuímos, encontrámos apenas uma peça em que isso não acontece. Trata-se do Novo, e Devertido Entremez Intitulado A Impertinencia das Mulheres, e a Paciencia dos Maridos,Lisboa, Na Officina de Franci∫co Borges de Sou∫a, Anno de 1792, Com licença da Real Meza da Commi∫∫aõ Geral ∫obre o Exame, e Cen∫ura dos Livros. Aqui, a mulher não abdica das suas pretensões e o marido, porque é fraco, deixa-se dominar totalmente por ela.

(32) Novo e Divertido Entremez Intitulado O Cazamento de huma Velha com hum Paralta, e a Má Vida, que Elle Lhe Deu, Lisboa, Na Officina de Domingos Gonsalves, Com licença da Real Meza Cen∫oria, s/d, p. 10.

(33) Idem, p. 9.

(34) A propósito dos costumes dos peraltas, vd. sobretudo a peça Incizam Joco-seria, Anatomica, Critica, Feita no Corpo Lisbonense Peraltico pelo Licenciado Damazio Montoja Qveimaço, e pelo Me∫mo Author Reduzida a Dialogo Lisboa, Na Officina de Manoel Coelho Amado, Anno m.dcc.lxxi., Com licença da Real Meza Cen∫oria; o Entremez As Basofias dos Peraltas, Descobertas, e Castigadas, Lisboa, Na Offic. Patr. De Francisco Luiz Ameno, m. ddc. Lxxxiv, Com licença da Real Me∫a Cen∫oria; a Nova Palestra que Teve hum Velho Campones por Nome Trifonio com hum Peralta de Lisboa por Nome Belmiro,por Bento Alves Coutinho,Lisboa, Na Officina de Filippe da Silva e Azevedo, Anno 1785, Com licença da Real Me∫a Cen∫oria; o Entremez As Industrias dos Casquilhos Critico, e Moral pelas Reflexoens, que ∫e Fazem ∫obre os que Ga∫taõ mais, do que as ∫uas Po∫∫ibilidades, e naõ Querem ∫ugeitar-∫e a Trabalhar, Lisboa, Na Officina de Filippe da Silva e Azevedo, Anno de 1786, Com Liçença da Real Me∫a Cen∫oria, bem como o Entremez Intitulado Apparato de hum Casquilho para Sahir a Dar as Boas Fe∫tas, Lisboa, Na Officina de Filippe da Silva e Azevedo, Anno de 1786, Com Licença da Real Meza Cen∫oria.

(35) Novo Entremez Intitulado A Sem Seremonia (sic), com que os Homens Enganam as Raparigas,Lisboa, Na Offic. de Domingos Gonsalves, Anno mdcclxxxvii, Com licença da Real Meza Cen∫oria, p. 3.

(36) Novo Entremez Intitulado Os Amantes Arrufados,Na Officina de Antonio Gomes, Com Licença da Real Meza da Commi∫∫aõ Geral ∫obre o Exame, e Cen∫ura dos Liv., s/d, p. 3.

(37) Joaquim Ramos de Carvalho, “As sexualidades”, em História da Vida Privada em Portugal, p. 106.

(38) Ibidem.

(39) Entremez Intitulado O Castigo da Ambiçaõ, ou o Velho Avarento, Enganado, e Desenganado, Lisboa, Na Offic. de José da Silva Nazareth, Anno de mdcclxxi., Com Licença da Real Meza Cen∫oria, p. 7. Cf. a Nova Pessa, Intitulada O Mizeravel Enganado, Lisboa, Na Officina de Franci∫co Borges de Souza, Anno de 1788, Com licença da Real Meza da Comi∫∫aõ Geral ∫obre o Exame, e Cen∫ura dos Livros, que aborda a mesma temática: um velho avarento que, para poupar dinheiro, está disposto a tudo, mesmo que, para isso, tenha de sacrificar a própria família. De acordo com Marie-Noëlle Ciccia, ambas as peças são inspiradas em L’Avare, de Molière (Marie-Noëlle Ciccia, Le Théâtre de Molière au Portugal au xviiie siècle, Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2003, p. 487).

(40) Entremez Intitulado A Astucioza Ideia, com que o Creado enganou o Amo para o Cazamento do Peralta, que ∫e Fingio Velho, e Inimigo de Jogar o Entrudo,Lisboa, Na Officina de Felippe Jozé de França e Liz, Anno m.dcc.xc, Com licença da Real Meza da Commi∫∫aõ Geral ∫obre o Exame, e Cen∫ura dos Livros, p. 7.

(41) Novo Entremez Intitulado: O Peralta Vaidozo, e o Velho Prezumido,Lisboa, Na Off. De Franci∫co Sabino dos Santos, Com licença da Real Meza Cen∫oria, An. 1779, p. 1.

(42) Maria Helena Lavrador, Alguns Aspectos da Sociedade Portuguesa do Século xviii através do seu Teatro Original e Traduzido, Tese de Licenciatura em Filologia Românica, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1945, p. 33.

(43) Ibidem.

(44) Ibidem.

(45) Novo, e Devertido (sic) Entremez Intitulado Nem por muito Madrugar Amanhece mais Cedo, s/l, Na Of. de Antonio Gomes, Com licença da Real Meza da Commi∫∫aõ Geral ∫obre o Exame e Cen∫ura dos Livros, s/d, p. 2.