Monumentalização da memória,
afirmação hiperbólica do eu poético e herança escravista
na construção dos espaços da cantoria (1870-1930)
Paulo Teixeira Iumatti
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo
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São fortes vigias do castelo
que vivem numa luta transitória,
e garante a paz na minha côrte
onde tenho sossêgo na memória
pois não há valentão e nem feliz
que consiga de lá contar vitória.
Joaquim Sem Fim, “A Fortaleza que levantei dentro de uma Lagoa”, p. 39.
Introdução
Abordaremos, neste texto, alguns problemas relativos ao estudo do Marco, gênero da literatura de folhetos brasileira que é um desdobramento da peleja. Nosso argumento principal diz respeito, porém, não ao Marco como gênero abstrato ou a ele em toda a extensão temporal de suas manifestações, mas, principalmente, a questões relativas a seu contexto de elaboração nas cantorias e aos primeiros anos em que se firmou como gênero de escrita/canto. Acreditamos que essa abordagem seja de particular interesse, uma vez que o Marco costuma envolver uma estratégia de monumentalização e de construção utópica em uma sociedade escravista ou recém egressa da escravidão. Tal estratégia, porém, não parte tão somente dos grupos dominantes, mas também dos próprios grupos subalternos, em meio aos quais se encontram os escravos negros e seus descendentes. Por outro lado, se tomamos a elaboração simbólica do inferno nos folhetos de cordel com diversas temáticas – por exemplo, os de cunho religioso, do cangaço ou mesmo dos próprios marcos – veremos que a memória da escravidão está ainda bastante atuante na primeira metade do século XX. Como equacionar, então, esses termos?
Na vertente que pretendemos desenvolver, a investigação tem, como pano de fundo, a busca do esclarecimento de aspectos do significado mais amplo da escravidão na literatura de cordel e na cultura brasileiras. Com efeito, o universo dos cantadores negros e a presença africana no momento de constituição da literatura de folhetos brasileira vêm sendo temas levantados e revisados recentemente pelos estudiosos, que investigam não só a sua numerosa presença como seu importante (1) papel. De fato, são conhecidas as formulações que vêem a literatura de folhetos brasileira como um desenvolvimento a partir de matrizes européias, mas as tentativas de enxergar as outras fontes e contextos dessa literatura – africanas, indígenas e ligadas aos hibridismos locais – parecem propor enigmas cada vez mais instigantes.
Marco, cantoria e escravidão na segunda metade do século XIX
O Marco é uma construção imaginária, feita por um cantador ou poeta, na qual se procura a delimitação e o estabelecimento de um território poético que desafia a imaginação dos outros cantadores ou poetas. (2) Como tal, o Marco é em geral uma cidade, castelo, fortaleza ou refúgio erigido em um vasto domínio, contendo incontáveis terras, rios, exércitos, animais fantásticos, riquezas, perigos e horrores. Ele é evocado, assim, para significar o território pelo qual se estenderia a fama de um cantador ou poeta, representando os limites de seu domínio invencível. Seus contornos particulares constituiriam, ao mesmo tempo, a forma específica que assumiria todo um estilo e uma imaginação poéticos.
Jerusa P. Ferreira define com bastante clareza o Marco, ao observar tratar-se de um “curioso torneio” – de grande originalidade e alcance, em termos de sua “operação criativa” –, caracterizando-se pelo “combate imaginário levado a um grau intenso”. Nele, o poeta constrói sua fortificação ou castelo, cabendo ao contendor destruir, pedra por pedra, tanto aquela fortaleza simbólica em seus detalhes, quanto a argumentação que a ergueu. Assim, o Marco, enquanto sistema de composição, ligar-se-ia sobretudo ao universo das pelejas, tendo Idelette M. F. dos Santos considerado a noção de castelo ou obra como um elemento indispensável à construção do universo imaginário dos cantadores, (3) embora persista nele, enquanto gênero da literatura de folhetos, também em grau extremo, uma tensão entre oralidade e escritura. (4) Na literatura de folhetos, a relação ambígua entre oralidade e escrita tende, em maior ou menor grau, ao super-desenvolvimento desta última. Nesse sentido, observa-se que o poeta pode mobilizar, condensar ou talvez antecipar os recursos (hipérboles, imagens etc.) utilizados em outros tipos de folhetos.
Embora o momento exato de seu nascimento seja obscuro, (5) o Marco surgiu provavelmente no ambiente das próprias cantorias, antecedendo, portanto, o período em que se começaram a imprimir folhetos de cordel, e persistindo, sob as mais variadas formas, ao longo do século XX. Do período colonial até o começo do século XX, as cantorias tiveram, possivelmente, muitas formas específicas, tendo sido realizadas, todavia, de modo mais semelhante a seu formato “atual” a partir de meados do século XIX, em grande parte, inicialmente, sob o patrocínio de fazendeiros e outras figuras de poder, (6) como no caso célebre do desafio do cantador e escravo Inácio da Catingueira com o cantador mestiço e bastardo Francisco Romano, ocorrido em Patos, na Paraíba, em 1874 – um dos mitos de fundação da cantoria e da própria literatura de folhetos brasileira.
Tudo indica ter sido em meio à crise da sociedade escravocrata, a partir de 1860, que se formou ou consolidou um espaço ritual de interseção entre negros e “brancos”, o qual se cristalizaria mais tarde como aquilo que chamamos de “cantoria nordestina”. Da parte dos escravos, tratava-se de um espaço de relativa liberdade em que eles poderiam conseguir menos restrições de movimento e os benefícios de um “ofício” especializado: melhores condições de vida e, até mesmo, a própria liberdade. São várias as referências, na bibliografia, a cantadores escravos que conseguiram sua liberdade por meio do canto – o que nos leva a pensar sua atuação por intermédio do conceito de negociação, (7) pelo qual a historiografia da escravidão tem procurado estudar a atuação de negros e escravos como agentes de sua história.
Manuel Caetano, Fabião das Queimadas e Preto Limão são exemplos conhecidos de cantadores que teriam conseguido a sua liberdade em um momento de enfraquecimento da instituição da escravidão. Para que se estudem esses casos, os pesquisadores dispõem de registros sobretudo oriundos do período pós-Abolição. Com efeito, esses cantadores foram comentados e, em vários casos, “entrevistados” por folcloristas a partir da última década do século XIX: Rodrigues de Carvalho, Leonardo Mota, Câmara Cascudo etc. Dispomos, ademais, dos registros da memória e das vozes contidas nos folhetos de cordel, cuja publicação se inicia em finais do século XIX ou começos do século XX. Cumpre sublinhar, aí, a importância de se localizar e estudar em detalhes não apenas os rastros dos cantadores escravos ou libertos, mas também os de todo e qualquer cantador ou poeta negro. Isto porque, para os negros, a herança da escravidão – seja pela falta de oportunidades, pelo enfrentamento do preconceito ou pelo que podemos chamar de sua dimensão simbólica – será parte do cotidiano até os dias de hoje, que dirá naquele período de começos da República, quando muitos, ainda que nascidos sob a égide da Lei do Ventre Livre (1871), haviam presenciado, na infância, os horrores do cativeiro.
Assim, é um grande e importante desafio realizar uma leitura crítica daqueles registros hoje disponíveis. Felizmente, a história social e a historiografia da escravidão têm avançado consideravelmente, permitindo que eles sejam cruzados com estudos de micro-história e informações obtidas a partir da análise de outros tipos de documentos, como os anúncios de escravos fugidos, documentos penais e a própria história oral. Com isso, descerra-se um vasto terreno de investigações – o qual entretanto começa, apenas, a ser desbravado.
O Marco na peleja de Inácio e Romano
Um exemplo de como esse trabalho de cruzamento de dados e análise crítica pode render frutos é o artigo da historiadora Linda Lewin sobre a peleja de Inácio da Catingueira e Francisco Romano. Para além dos seus objetivos expressos, tal estudo nos parece permitir vislumbrar a formação daquele espaço de interseção (conflituosa) entre negros e “brancos” no final do período escravista, abrindo toda uma nova perspectiva de análise ao abordar de forma sofisticada a memória presentenos folhetos e nos próprios depoimentos dos folcloristas. Tal trabalho nos revela que, em torno da memória daquele duelo, abriu-se um acirrado terreno de disputas, em que se podem constatar, ao menos, dois grupos principais: 1) aquele em torno de Francisco Romano e toda uma família de cantadores livres e mestiços da região do Teixeira, e que teria como representante chave Francisco das Chagas Batista – figura que, como poeta, editor, impressor, livreiro e “folclorista”, ocuparia posição estratégica no campo da literatura de folhetos como um todo; 2) e aquele formado por uma “memória popular” em que se colocam, dentre outros, sobretudo escravos e libertos. É deste último grupo que participam, em sua maior parte, como cultivadores de uma posição que tende a idealizar a atuação de Inácio e que poderia contestar o preconceito racial, os cantadores negros. Tais cantadores permanecerão, todavia, ao longo do tempo, relativamente à margem do campo da literatura de folhetos.
Ora, é a partir do reconhecimento cada vez maior dessa ideia básica – a de que os folhetos e as obras dos folcloristas são parte integrante de processos de disputa pela fabricação da memória – que será possível reescrever, sob bases mais firmes, a história da literatura de folhetos brasileira. E, sob tal ponto de vista, o Marco, como tópica da cantoria ou gênero da literatura de folhetos de caráter monumentalizante, aparece como um objeto de estudos extremamente instigante. Outro fator que torna o Marco estratégico é o fato de ele levar a um grau extremo, e a nosso ver sem parelelos em outras manifestações culturais, a mobilização de conceitos estruturantes para a sociedade escravista, transmitidos para o pós-Abolição: domínio, território, propriedade, liberdade, afirmação do eu, criação.
Nesse sentido, chama a atenção, por exemplo, um traço que tem passado quase despercebido aos inúmeros comentadores do duelo de Inácio e Romano: o fato de ele ter se dado, ou antes, lembrado, nos termos da tópica do Marco. Em pelo menos três versões dessa peleja, (8) sua presença é, em maior ou menor grau, explicíta. Em primeiro lugar, nas estrofes coletadas por Rodrigues de Carvalho (1903), as quais giram em torno das ameaças de Romano ao domínio de Catingueira:
Romano
Ignácio tu reconheces,
Que eu sou o rei dos cantador,
P’rá cantar ‘stou aprovado,
Em qualquer lugar que estou.
P’rá tomar a Catingueira,
Só te afirmo ainda vou.
Ignácio
Branco, dou-lhe um parecer,
Vossa mercê me atenda,
Se fôr lá para brincarmos
Possa ser que não lhe ofenda.
Para tomar a Catingueira,
Pode ser que se arrependa. (9)
No livro de Rodrigues de Carvalho, as estrofes não dão a entender a vitória seja de Inácio, seja de Romano. Pelo contrário, elas parecem antes uma parte inicial do desafio. No que se refere ao assunto, o folclorista chega mesmo a anotar, adiante, no livro, uma versão em que Inácio teria saído vencedor. (10)
Aquelas estrofes, e outras que vêm a seguir, são ecoadas pela versão de Francisco das Chagas Batista (publicada, possivelmente, também em começos do século XX, mas certamente em data posterior ao livro de Carvalho). (11) Tendo sido coletadas entre finais do século XIX e começos do século XX, sua presença pressupõe uma disputa em torno de um domínio poético reconhecido pelos cantadores/personagens. Domínio esse que envolvia, por sua vez, uma disputa entre negros e “brancos”, em torno da memória da escravidão.
Na versão de Leandro Gomes de Barros – poeta que faleceu em 1918 –, Romano asseria que iria a Catingueira e tomaria o “castelo” de Inácio – trata-se aqui, evidentemente, mais uma vez, de seu domínio poético, reconhecido como tal mesmo se Inácio persistia como escravo; e também afirmava textualmente que
Seja você o que for,
Eu vou sempre à Catingueira,
E hei de levar um marco,
Para cada costaneira,
Os de lá ficam dizendo,
Lá se foi nossa ribeira. (12)
Inácio, por sua vez, afirmava que
Os muros lá do seu sítio
Com um sopro só eu desmancho.
Abra o olho e limpe a vista
Olhe a desgraça no rancho
E veja que o negro velho
Dar-lhe serviço de gancho. (13)
Nos versos fica também entendido que a cidadela e seus intrumentos de ataque e defesa são os próprios versos dos cantadores.
É evidente, para o leitor atual, que tais conceitos não podem ser tomados ingenuamente como tendo sido parte “real” do duelo de 1874. O simples fato de pertecerem a registros de pelo menos um quarto de século depois já os colocariam, desse prisma, sob suspeita. No entanto, chama a atenção o quanto eles adquirem significado quando colocados na chave da sociedade da escravidão e, particularmente, da formação de um espaço ritual da cantoria. Quanto à sociedade da escravidão, devemos lembrar as disputas em torno da locomoção e do território – inclusive os espaços de contestação, como nos quilombos (como bem notou, já nos anos 1970, Ariano Suassuna). (14) A própria colocação de um marco territorial era uma possibilidade de fuga, (15) e lugares ermos eram território de conflitos e negociações com os escravos. Corpos e vozes dos escravos eram marcados, como símbolo de propriedade. (16)
Do ponto de vista da formação do espaço da cantoria, aqueles conceitos são também reveladores. Apoiando-nos um tanto livremente no trabalho de Elizabeth Travassos sobre a ética na cantoria, talvez possamos dizer que o desafio entre Inácio e Romano pode ter jogado um papel central na construção de um espaço mítico que mostra algumas regras básicas da cantoria, válidas para o século XX: em particular, a eliminação das assimetrias entre os oponentes e sua transformação em oposição entre poetas. (17) Nesse sentido, parece-nos que a presença da tópica do Marco na memória desse desafio aponta para os termos de um processo de construção caracterizado, de um lado, pela posse, pela individualidade e pela luta pela liberdade; e, de outro, por uma estratégia de monumentalização que envolveu a consolidação de uma instituição social – o espaço da cantoria – e suas regras.
Ora, tal espaço não foi dado naturalmente, e permaneceu movediço ao longo do tempo, embora consolidando algumas características – como, por exemplo, a progressiva exclusão dos cantadores negros. Ele é fruto, assim, de uma luta social, que se realizou, a partir de dado momento, por intermédio de uma disputa pela memória. O duelo de Inácio e Romano será, nesse sentido, um “marco” – ou seja, um divisor de águas – e, ao mesmo tempo, um limite – constantemente referido e interpretado. Nesse processo, que envolveu, concomitantemente, negociação e invenção, a formação desse espaço não se dará sem um “preço”, que será o de, inicialmente, impor aos cantadores negros o domínio das armas do establishment: a viola, o improviso em português, a performance estática. (18) Com efeito, se, no duelo de Patos, Inácio utilizou de fato o pandeiro, improvisando ao modo da embolada, permanecendo além disso em postura corporal ereta, é forçoso reconhecer que a formação do espaço da cantoria se encaminhou no sentido de eliminar ou marginalizar essa possibilidade de performance e também as formas de cantoria mais próximas da embolada. Ou seja: para participarem do espaço da cantoria, os cantadores negros tiveram de dominar cada vez mais as armas dos “brancos” (o que talvez já fosse uma situação importante no contexto de crise da escravidão), reforçadas, ao longo do tempo, pelos processos de exclusão social e pelo peso do conjunto de instituições permeadas pelo racismo: a viola, a performance estática e as velhas e novas regras poéticas que se distanciavam da embolada. Os que não estiveram dispostos a tal, continuaram a desenvolver suas outras formas de cantoria, em espaços mais à margem, o que de certa forma reproduziu o próprio processo de marginalização das populações negras no pós-Abolição.
O Marco na peleja de Manuel Cabeceira e Manuel Caetano
Observamos, acima, como o desafio de Inácio e Romano mobilizou a tópica do Marco, a qual sugere uma relação clara entre os conceitos principais que estruturam a cantoria e aqueles que regem a sociedade da escravidão. Vimos, também, que tal tópica sinaliza o processo de construção/ monumentalização de um espaço ritual institucionalizado em que se definem as regras que vão reger a cantoria – as quais, com o tempo, tenderão a marginalizar afro-descendentes e mulheres. Nesse contexto, pode-se talvez ver o Marco servir, em alguns casos, ao esmagamento simbólico, a posteriori, dos adversários: não por acaso, o “fazendeiro-cantador” cearense Neco Martins (1865-1940), protagonista de célebre peleja com Chica Barrosa (1867-1916) – cantadora mulata talentosa, filha de pais alforriados, oriunda de uma comunidade quilombola em Pombal, na Paraíba –, será lembrado como um dos possíveis pioneiros do gênero do Marco: “[…] De seu Marco da Divisão sobraram os retalhos que Leonardo Mota transcreveu em Cantadores, copiados do manuscrito que, confessa, teve em mãos. […] Infelizmente, Leonardo Mota não transcreveu todo o Marco da Divisão, de Neco Martins (e o teve em mãos), nem informou a data de composição, em seu livro Cantadores. […]” (19)
Ora, esses mesmos elementos – embate entre um cantador livre e um escravo, ex-escravo ou afrodescendente; presença difusa da tópica do Marco; conceitos da sociedade escravista e construção de um espaço ritual – estão presentes em outro duelo constantemente evocado: o(s) de Manuel Cabeceira, descrito e lembrado como cantador “branco” (avermelhado), com Manuel Caetano, escravo que teria obtido sua liberdade através do canto. Esse outro embate “fundador”, embora não abranja um único evento, revela, sob alguns aspectos, similaridades em relação ao modo como foi lembrado/construído o duelo entre Romano e Inácio. Neste, a memória coletiva reteve o “texto Catingueira” – que se aproximava do ponto de vista de Inácio – , ao passo que na literatura de cordel coexistiram interpretações que fixaram aspectos desse texto mas que, em maior ou menor grau, tenderam a substituí-lo pelo chamado “texto Teixeira” – a interpretação que preserva a memória de Romano, apaga sua transgressão das “regras do jogo” e lhe dá a vitória. No caso do(s) embate(s) entre Cabeceira e Caetano, percebem-se posições menos discrepantes, mas, ainda assim, significativas. Elas podem ser representadas, de um lado, pelo folclorista Rodrigues de Carvalho, que, escrevendo em 1903, deixa um testemunho relativamente favorável do escravo Manuel Caetano (tal como também citava um informante que dava vitória a Inácio no duelo com Romano…); (20) e, por outro, novamente, pelo cordelista, editor e “folclorista” Francisco das Chagas Batista, que fornece uma outra versão para o embate, na qual são inseridos conceitos pertinentes ao gênero do Marco, tendendo a sublinhar a discrepância social dos protagonistas – ao contrário do que fizera com Francisco Romano, sem ocultar a ambiguidade racial de Cabeceira – mas decididamente elogiando este último.
Assim, em Rodrigues de Carvalho vislumbramos uma interessante construção que parece compensar certo equilíbrio nas trocas poéticas que “transcreve” – com destaque para a performance de Manuel Caetano –, com traços de detração dos negros, como seja, por exemplo, na transcrição de um fragmento de um desafio entre Manuel Cabeceira e o diabo descrito como cantador negro. (21) Ora, é flagrante o contraste dessa perspectiva com a de Chagas Batista. Em sua coletânea, engajada em um complexo processo de produção/reprodução da memória coletiva, ele se empenha em exaltar sobretudo a atuação de Manuel Cabeceira (embora se perceba, no duelo em si mesmo, uma nítida vantagem de Manuel Caetano). A começar pelo próprio verbete em que se insere a “transcrição” do duelo, dedicado a Cabeceira e destinado a louvar e honrar o seu perfil (Batista afirma, por exemplo, ter ouvido o cantador fazer sextilhas em rimas fechadas, “como fez Camões nos Lusíadas”), (22) fornecendo, assim, informações biográficas edificantes. É como se, por melhor que fosse o cantador escravo, ele tivesse de estar, de toda forma, e também no que se refere à esfera da memória, em uma posição subordinada, valendo-se de um espaço – a edição em livro mimetizando mas, ao mesmo tempo, hierarquizando o espaço ritual da cantoria – que lhe teria sido magnanimamente cedido.
Cabeceira é descrito por Batista como “um tipo vermelho e de cabelos enroscados” (ao passo que Rodrigues de Carvalho o descreve como “alvacento, um tanto rosalgar, feições grosseiras e de musculatura rija”), (23) como alguém de “muita coragem” mas não “malvado”. Os adjetivos são significativos, já que Rodrigues de Carvalho, apesar de exaltar as qualidades de Cabeceira (“talentoso”, “improvisador de mérito”, “muito apreciado”, “ótima voz” etc.), o descreve, por outro lado, como alguém com “verve a Bocage”, e que “vendia fumo pelas feiras, e (fatalidade grotesca) diziam as más línguas que ele não podia ver cavalo alheio” (24) – sugestão que Batista textualmente refuta (“diziam as más línguas que Manuel Cabeceira dava-se ao esporte de furtar cavalo, entretanto isso nunca foi provado”). (25)
Além disso, Rodrigues de Carvalho acaba em parte igualando o status de Cabeceira ao de Caetano ao caracterizar, no final do livro, uma nova espécie de duelo e as novas práticas a ela associadas – envolvendo, por exemplo, o convite de um cantador a outro –, tendo antes mencionado que o “cantador”, de forma geral, andava “invariavelmente aguardentado”. (26) A propósito, o surgimento dessa nova espécie de duelo se refere, evidentemente, à própria rearticulação do espaço da cantoria a partir da Abolição.
Ademais, e como se não bastasse, Carvalho encerra sua famosíssima descrição do duelo entre Caetano e Cabeceira com a transcrição de uma estrofe arrasadora de Manuel Caetano – à qual diz ter se seguido uma briga (‘[…] E os diabos todos do inferno/ Nas suas costelas comendo.’ / Acabou o desafio em briga).” Em seguida, o único comentário do folclorista é um pequeno elogio de Manuel Caetano (!), descrito como “um dos notáveis poetas populares da Paraíba; trovador repentista, descendente pronunciado da raça africana. O cenário de suas proezas foi a zona brejosa daquele Estado, de Araruna à Campina Grande, de Alagoinha à Barra de Santa Rosa.” (27)
Ora, o tom dos comentários de Chagas Batista é completamente diferente. Em primeiro lugar, faz questão de destacar a diferença de status entre Cabeceira e Caetano – não apenas um “branco” (embora essa “branquitude” seja por Caetano contestada; aliás, o próprio Cabeceira, malgrado afirme ser “homem branco”, admite certa ambiguidade ao dizer que o que ele teria de “vermelho”, o outro teria de “cinzento”), e o outro, negro; mas um, capitão do mato, e o outro, escravo. Com efeito, em sua apresentação do perfil de Cabeceira, Batista destaca a informação de que ele teria sido um bom caçador de escravos fugidos:
Quando algum capitão-de-campo nao conseguia prender um escravo fugido, era Manuel Cabeceira quem ia amarrar o negro.
Certa vez, na feira de Goiana, um delegado de polícia, chegando a Cabeceira, disse-lhe: “Esteja preso!” Cabeceira, fazendo um rápido movimento com as mãos, disse “E eu o matei!” O delegado deu um grande pulo, e Cabeceira, rindo-se, fugiu por entre a multidão dos matutos feirantes. (28)
É aí que Batista narra a ocasião em que teria visto Cabeceira cantando na fazenda Pedra d’Água, quando teria recebido uma carta do Capitão João de Melo, de Cha do Moreno, avisando-o de que o Moreno estaria tomado pelo cantador negro Manuel Caetano (narrativa, como se vê, substancialmente diversa da de Rodrigues de Carvalho, que fala sobre um convite entre os cantadores (29) – o que permanece significativo mesmo que se possa considerar que se tratava “de desafios diferentes”). Tal notícia teria levado o cantador a seguir imediatamente para o local, já que não admitia que um negro lá estivesse. Não sabemos se a narrativa mistura elementos de um episódio realmente ocorrido ou não, assim, é impossível saber se nesta ocasião Caetano ainda era escravo (lembre-se que Batista nasceu em 1882 e portanto teria tido pouca probabilidade de ter visto semelhante disputa). (30) Certo é que Batista destaca, referindo-se a Caetano, que, “tendo se dedicado à vida de cantador, o seu senhor dera-lhe a carta de alforria”, sem precisar a data. (31)
Por outro lado, em sua estratégia de construção/ monumentalização da memória, Batista também exalta a atuação de Caetano. Assim, é significativo que, nas trocas poéticas que transcreve/ inventa (?), Caetano se defenda excepcionalmente bem:
Cabeceira
Negro, encurta essa lingua,
Vai conhecer teu lugar;
Olha que eu sou homem branco
Que nasci para mandar;
Eu nao sou da tua igualha,
Moleque pé de “xambar”.
Caetano
Me comparou com a cabra
Sem eu ser do seu chiqueiro?
Está me chamando negro
Sem eu custar seu dinheiro?
Se quiser ser respeitado,
Respeite o negro primeiro.
Mais do que isso, é para nós fundamental observar que, nessas trocas, revela-se que os conceitos dominantes do gênero do marco – mando; propriedade; demarcação territorial; liberdade; criação poética – estão presentes em um jogo já bastante estruturado (e além disso marcado pela oposição “branco” X negro). No trecho abaixo, isso se revela ao Cabeceira tentar ocupar a posição de senhor do escravo Caetano, algo que corresponderia ao domínio sobre o território em que estavam:
Cabeceira
Negro, podes ir embora,
Porque de ti não preciso;
Tu não podes cantar mais (32)
No terreno em que eu piso;
Aqui na Cha do Moreno
Caso, confesso e batizo.
Caetano
Você a mim não batiza,
Porque já sou batizado,
Nao confessa e nem me casa,
Porque eu já sou casado;
Quedê a tua batina
Vigário descoroado!…
Ante a contestação, Cabeceira reafirma o conceito da posse, surgindo o tema do domínio sobre um território inacessível, que seria híper-desenvolvido no gênero do Marco:
Cabeceira
Senhor Manuel Caetano,
Eu sou Manuel Cabeceira,
Tenho montes elevados
Que ninguém sobe a ladeira;
Hoje aqui você verá
Isso, quer queira ou não queira.
Tão ou ainda mais significativa é a resposta de Caetano, que, em seu canto, reafirma sua liberdade, sendo que o território passível de ser “subido” é evidentemente o próprio terreno poético, dentro do qual até mesmo a alusão ao possível calcanhar de Aquiles da baixa estatura fisica do oponente torna-se permitida:
Caetano
Senhor Manuel Cabeceira,
Mais alta é a Borborema,
Mas eu subo em qualquer canto
Sem temer que o peito gema;
Quanto mais você que é baixo
E que já tomei-lhe a extrema. (33)
Nesse contexto, o possível fato de Caetano ter obtido sua liberdade justamente por sua excelência como cantador talvez possa ser visto em relação com sua liberdade de imaginação, com sua capacidade de resistência à construção de edifícios poéticos destinados a subjugá-lo e também, no limite, com sua própria capacidade de construção desses mesmos edifícios.
Seja como for, o que nos interessa sublinhar, neste momento, é que o tipo de operação que envolve a “memória seletiva” dos folcloristas requer procedimentos de crítica radical. Nesse sentido, é curioso pensar que essa (relativa) exaltação da atuação de Caetano possa, em outro plano, se relacionar à busca de legitimidade e verossimilhança para a versão que o mesmo autor produzira da peleja de Inácio e Romano. Mas mais importante ainda é sublinhar que a literatura de cordel parece ter dado muito mais voz a Cabeceira, como personagem de outras pelejas, do que a Caetano. É o que se constata no levantamento dos títulos nos Acervos disponíveis para consulta – a presença de Cabeceira é constante, enquanto Caetano parece ter quase desaparecido. Assim, é bem possível que tenha se operado, nesse caso, tal como no de Inácio e Romano, um trabalho de construção que tendeu a exaltar uma das partes em detrimento da outra – e aí volta a ser interessante comparar as estratégias de Rodrigues de Carvalho com as observações de folcloristas posteriores, como Chagas Batista e Câmara Cascudo.
Ao comentar, em Vaqueiros e cantadores, os “temas” das cantorias, Câmara Cascudo aborda, brevemente, a “tradição” dos marcos, lembrando, dentre eles, o “forte”, de Ugolino; a Lagoa de Germano; o “Castelo” de Josué Romano (citado em luta com Manuel Serrador, registrado por Leonardo Mota e também transcrito por Cascudo); e, por fim, um trecho da peleja de Caetano com Cabeceira. Significativamente, todos aqueles cantadores – Ugolino, Germano e o próprio filho de Francisco Romano, Josué Romano – fazem parte do grupo do Teixeira, de que Francisco das Chagas Batista é integrante.
Para Cascudo, teria sido Manuel Caetano, na peleja citada segundo a versão de Chagas Batista (a quem não são dados, porém, os créditos) que teria recorrido “ao antigo molde” (dos Marcos…), no seguinte trecho:
Então eu vou dar um pau
Para você se atrepá,
No tronco eu boto uma onça,
No meio do maracajá,
Em cada galho de inxu
E no olho um aripuá…
Eu passo fogo na onça
E derrubo o maracajá,
Chamusco os inxús a faixo,
E queimo o arapuá;
Deixo o pau limpo indefeso
P’ra você nele trepá… (34)
Importa realçar que construções como essa são fundamentais para entendermos o processo de fabricação da memória nas versões dos duelos e outros registros – e, nesse sentido, é essencial analisar a rede de diálogos entre folcloristas e cordéis. Dessarte, é também significativo que Coriolano de Medeiros, membro do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, em seu prefácio a Cantadores e poetas populares, destaque, em particular, a transcrição, por Batista, justamente das disputas entre Romano e Inácio e Caetano e Cabeceira. (35)
Os usos do Marco por Joaquim Francisco Santana
Vimos acima que em duas pelejas “fundadoras” da cantoria – ambas protagonizadas por cantadores negros e “brancos” – pelejas estas centrais para a consolidação da memória do espaço da cantoria e sua formação no século XX – , o Marco está, de algum modo, presente. Em uma delas, ele foi utilizado como tópica, num provável esforço, dentre outros aspectos, de contextualização/construção de verossimilhança e monumentalização (“Desafio de Inácio e Romano”); na outra, foram mobilizados seus conceitos básicos, em contexto de destaque à diferença de status entre ambos os cantadores (“Desafio de Caetano e Cabeceira”). Ora, essas pelejas trazem como característica fundamental o fato de tematizarem não apenas duelos entre negros e “brancos”, mas, particularmente, entre cantadores escravos e livres.
Parece-nos, assim, que a memória presente seja nas transcrições dos “folcloristas”, seja na literatura de folhetos, aponta para uma possível conexão entre a temática dos Marcos e o universo da sociedade escravista.
Uma outra forma de verificar essa conexão parece-nos a leitura dos Marcos efetivamente realizados por cantadores negros. Em outro estudo, procuramos abordar os traços da performance e da vida de Severino Perigo, cantador de Patos, Paraíba, admirador de Inácio da Catingueira, e que foi “entrevistado”, aparentemente nos anos 1920, por Leonardo Mota. Mota transcreve, em Violeiros do Norte, um pequeno Marco que lhe teria sido cantado por Perigo (e que foi estranhamente considerado por Almeida e Sobrinho como uma possível “deturpação” de um suposto marco de Francisco Romano). (36)
Um outro caso interessante é o de Joaquim Francisco Santana (1877-1917), cantador negro de Camutanga, pequena localidade da Zona da Mata Norte de Pernambuco (como se sabe, região de extrema importância como exportadora de açúcar ao longo dos oitocentos), na fronteira com a Paraíba. Joaquim Francisco, também conhecido como Sem Fim ou Joaquim Sem Fim, é uma figura presente tanto na obra dos folcloristas como em pelejas nas primeiras décadas da literatura de folhetos. Assim, trechos de um duelo de que participou foram transcritos, por exemplo, por Gustavo Barroso. Por outro lado, ele, ou antes, seu personagem nos folhetos também aparece lembrado na célebre peleja de Francisco Sales Areda com o “Negro Visão”. Mais interessante ainda, Joaquim Francisco escreveu um ou dois marcos (ou antes, como argumentaremos em outro estudo, duas versões para o mesmo movimento de construção de um Marco), “A defesa da lagoa” e “A Fortaleza que construí em uma lagoa”, o primeiro texto tendo sido transcrito por Francisco das Chagas Batista em 1929, e o segundo, apenas em 1981, por Átila Almeida e José Alves Sobrinho. (37)
Joaquim Francisco nasceu, segundo consta, em 1877, tendo morrido em 1917, em Mari, na Paraíba. (38) Essas localidades sugerem um percurso itinerante marcado pela atividade de cantador neste último estado – entre o litoral, (39) Guarabira, Campina Grande e a própria Zona da Mata Norte de Pernambuco e proximidades. (40) Ao longo desse percurso, Joaquim Francisco teria tido a parceria de seu irmão Manuel, também cantador.
Mesmo que não possamos entrar no momento na história do município de Camutanga ou em detalhes biográficos do percurso de Joaquim Francisco, é importante destacar que, ainda que tenha nascido seis anos após a Lei do Ventre Livre, sua experiência social foi a de um homem negro que vivenciou, na infância, o contexto escravista marcado por uma institucionalidade crescente da luta pela liberdade e também pelo movimento abolicionista. Não sabemos se os pais ou avós de Joaquim Francisco foram escravos. O que sabemos é que ele encontrou, no espaço ritual da cantoria, que se rearticulava com a crise da escravidão – e se rearticularia uma vez mais, no pós-Abolição – um caminho para a realização de seu talento poético. Assim, segundo Chagas Batista, Joaquim Francisco teria “deixado de ser agricultor para ser cantador”, sabendo ler e “conhecendo praticamente alguns ramos das ciências vulgares. A sua veia poética era franca, o seu repente era fácil e inspirado./ Diziam os cantadores seus contemporâneos que o negro Joaquim Francisco era invencível.” (41)
Os registros da memória de Joaquim Francisco Santana são, como é comum na cantoria, superlativos. Assim, o Dicionário Bio-bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada nos informa que ele teria sido um Cantador “de primeira linha”, dentre outras informações importantes, algumas delas tomadas da nota biográfica de Francisco das Chagas Batista, em seu livro de 1929:
[…] Atuou com seu irmão Manoel, também cantador, no litoral paraibano. Escreveu “A defesa da lagoa”, um marco, transcrito por Chagas Batista em Cantadores e Poetas Populares. Sem Fim era preto, sabia ler e escrever, tinha alguma instrução e seu “repente era fácil e inspirado”. Cantador de primeira linha. Sustentou um desafio com Antonio Ferreira da Cruz outro cantador e poeta popular de invergadura. Desse desafio, Gustavo Barroso dá notícia em “Ao som da viola”. Antonio da Cruz, dando mostras de grande senso de humor publicou sobre essa peleja um folheto intitulado: Uma surra que Antonio da Cruz levou do negro Joaquim Francisco em 1908 na cidade de Itabaiana. (42)
Apesar do exagero que caracteriza a forma como é evocada a memória dos cantadores em muitos casos, chamam particularmente a atenção os dados relativos a Joaquim Francisco. Afinal, não é qualquer cantador negro que consegue um reconhecimento tão cabal, por seu adversário, de sua vitória – como teria sido, aparentemente, o caso do reconhecimento de Joaquim Francisco por Antonio da Cruz, e ainda que tenha se cercado de ironia e outros sentidos que envolviam detração. (43) E ainda mais se consideramos que o insulto relativo à cor e à “raça” pode ter estado no cerne desse desafio – é este certamente, pelo menos, o caso da versão transcrita por Gustavo Barroso. (44) O que foi, de todo modo, uma constante nos embates entre cantadores negros e “brancos”.
Para entender essas particularidades, temos algumas hipóteses. Em primeiro lugar, notamos que a excepcionalidade da performance de Joaquim Francisco tem, como elemento importante, o fato de recorrer à inversão da comum associação entre o negro e o diabo – associação presente não só em tantas e tantas pelejas, mas também em folhetos com temáticas as mais diversas. Com efeito, no Martelo transcrito por Gustavo Barroso, uma característica marcante da estratégia do cantador diz respeito à insistência na tematização do diabo – que aparece projetado, sempre, na figura de seu oponente – (algo que Manoel Caetano já havia feito com Manuel Cabeceira no final da versão do duelo transcrita por Rodrigues de Carvalho – o que teria resultado em briga, como vimos no item anterior):
J. — Antes disso eu lhe obrigo
A dizer por sua própria bôcca
Que a sua sorte foi tão pouca,
Que o diabo é seu tio e seu amigo,
Que nasceu por desgraça e castigo,
E de Poncio Pilatos é irmão.
Foi Herodes quem lhe deu educação
E o céo para elle não agrada,
Que o inferno será sua morada
E Judas foi seu mestre e seu patrão! (45)
Essa insistência no uso da figura do diabo nas trocas poéticas casa-se com a possibilidade de Joaquim Francisco ter sido extremamente religioso, como nos sugere um comentário de sua peleja com o demônio. (46) Em um contexto em que vários elementos afro são de fato demonizados pela Igreja, formando uma das bases principais para a detração dos negros no universo oficial, Joaquim Sem Fim parece ter adotado uma estratégia bem-sucedida, até certo ponto, de domínio dos símbolos, figuras e valores do catolicismo. Com isso, eliminava, do ponto de vista do espaço hegemônico da cantoria, essa sua “desvantagem”. A propósito, é significativa, na estrofe acima, a quantidade de referências a figuras bíblicas – todas elas qualificadas e pertinentes.
A importância dessa estratégia na trajetória e na construção de Joaquim Francisco como cantador e performer pode ainda ser vista na famosa Peleja de Joaquim Francisco com o demônio, a qual se inicia com a apresentação de Joaquim Francisco como “rei dos cantadores”:
Leitores vou descrever
Uma animada peleja
Que o rei dos cantadores,
Numa herdade sertaneja
Teve com o Satanás
Que do inferno é capataz
[…] o pai da inveja” […] (47)
Significativamente, Câmara Cascudo escreve, em Vaqueiros e cantadores, que “uma das tradições sertanejas é que Joaquim Francisco se bateu com o Diabo num desafio e o venceu cantando o ‘Ofício de Nossa Senhora’”. (48) “Tradição sertaneja” possivelmente em interação com uma peleja publicada, acrescente-se. Mas, para nossos propósitos aqui, pouco importa. O fato é que tais registros nos apresentam um contra-discurso em relação à imagem tradicional de detração do negro, veiculada por tantos cordéis, e que o associava comumente ao diabo. Tal associação ganharia, ao longo do século XX, cada vez mais força – vide o estrondoso sucesso de A chegada de Lampião no Inferno, de José Pacheco – o que demonstra a derrota desse contra-discurso de Joaquim Francisco (ao menos, nos termos propostos pela sua trajetória e em meio ao campo geral da literatura de folhetos).
Não obstante, temos também indícios de que a posição de um cantador negro opositor do diabo, representando a fé católica (49) e ainda por cima retratado como “rei dos cantadores” foi, por outro lado, naquele mesmo momento de sua formulação, violentamente contestada. Mário de Andrade, ao comentar o preconceito e o racismo contra o negro em diversas manifestações culturais, mencionou, em seu texto “Estudos sobre o negro”, (50) uma peleja de Joaquim Francisco que nos parece nesse sentido exemplar. Além disso – e, talvez, mais importante – tal peleja nos coloca, novamente, diante da temática ou dos conceitos principais do Marco. Assim, no folheto, ao questionar Joaquim Sem Fim, o cantador José Claudino evocou as imagens ou conceitos que remontavam ao universo do Marco (reino; império; poder; senhorio etc.) – já estabelecidos pelo próprio Joaquim Francisco no começo da peleja. E associou Sem Fim, pelo simples fato de ser negro, ao cativeiro, já que casa de negro seria a “senzala”:
Eu vou dizer a verdade:
Negro não tem senhoria,
Não tem reino nem império
Nem poder nem fidalguia,
Negro resmunga e não fala
E sua casa é a senzala
Onde vive em gritaria. (51)
Com efeito, nessa peleja, José Claudino visitava Joaquim Francisco em seu “Império”, questionando-o em sua “celebridade” e reinado. Cabia a Sem Fim reafirmar, por sua vez, a sua soberania (“[…] e demais aqui sou rei/ tenho coroa de papa/ e tenho cajado e capa/ de um cantor que já matei”, p. 1). O grande ponto é que a peleja se encaminha para as trocas poéticas centradas na questão da cor e da escravidão (“[…] eu sou negro de renome/ tenho fama em toda parte / você é branco sem nome […]” (p. 5); “[…] eu sou branco e sou altivo/ trago a fronte levantada/ porque nunca fui cativo […]”, ibid.), em que Joaquim é insultado. O trecho que cito a seguir é o momento decisivo em que José Claudino acaba por reconhecer sua derrota e, novamente, o “Império” de Sem Fim – seu “gênio engenhoso” e seu “verso poderoso”:
JF – Não se adiante, abelhudo
eu sou preto mas sou bravo
não fui cativo e sim tenho
você hoje como escravo
ninguém hoje aqui te acode
você berra como bode
e depois tua cova eu cavo
JC – Joaquim Francisco eu conheço
que você é talentoso
confesso que estou vencido
porque teu gênio engenhoso
não se esgota, não fraqueja
você é rei na peleja
e no verso é poderoso. (52)
Ora, naquela mesma peleja entre Joaquim Francisco e o demônio, a tópica do Marco também ressurgia, de forma ainda mais inequívoca, com o cantador desenhando seu domínio de escala descomunal – “sem fim” – o que era tensionado, porém, pelo desmanche a que procedia, em seguida, seu interlocutor:
JF: Camarada eu habito num castello
Construído de bronze e mineral,
Sua torre tem dez milhões de metros
Só de altura; o tamanho natural
É mais alto que a torre de Babel,
É enorme, sem fim, descomunal
D: Mas p’ra mim, essa sua fortaleza
Não resiste, desaba, rui por terra;
Tenho serras que cortam todo aço
E serrote que todo metal serra;
Desta forma eu desfaço seu castello
E você dentro delle até se aterra.
JF: Mas, amigo, na minha fortaleza
Tem setenta mil pares de janella,
Em cada uma um dragão faz o serviço
Das mais vivas e alertas sentinellas,
Basta só um dragão p’ra devoral-o
… Ou fazer encebar suas canellas. […] (53)
Mesmo que não estejamos certos quanto à autoria e ignoremos as condições de produção desses folhetos, as passagens que citamos estabelecem uma forte ligação entre o universo do Marco e o da escravidão. Parecem sugerir, também, que Joaquim Sem Fim constantemente se deparou, não apenas nas pelejas mas nos próprios duelos que enfrentou ao longo de sua breve vida, com a contestação de seu “domínio” – embora não de suas habilidades poéticas, sempre reiteradas na performance e, portanto, de certa forma, ilimitadas –, contestação particularmente ancorada na busca do rebaixamento alicerçado no insulto racista e na evocação da memória da escravidão.
Vemos, assim, que a tópica do Marco fornecia armas para uma afirmação superlativa ou hiperbólica do “eu poético” – consubstanciada no próprio nome do cantador (54) –, em um contexto particularmente hostil: o conjunto das instituições permeadas pela exclusão e o racismo. Oferecia, também, toda uma proteção simbólica, que reproduzia a necessidade de proteção e defesa do corpo, da pele, da voz – que encontramos em outros cantadores, (55) e que faz todo sentido se consideramos, ainda, a aspereza terrível e grotesca dos termos em que se realizavam os combates. (56) Aspereza que é difícil imaginar eliminada ou ausente da cantoria no contexto dos anos 1870 e 1880, de vigência de uma escravidão já contestada. Assim, é muito possível que a super-afirmação do eu e a migração dessa super-afirmação a patamar mítico, apropriado pela memória popular afro – para além de Inácio e Caetano: Malunguinho, rei das Matas de Pernambuco (57) – seja parte de uma mesma estratégia que levou ao progressivo e cada vez mais frequente recurso à tópica do Marco, fazendo parte do conjunto de fatores que talvez expliquem a sua transformação em gênero específico da peleja.
Essa necessidade de afirmação superlativa ou hiperbólica – leia-se manter a cabeça erguida diante da exclusão e do racismo – nos ajuda a entender porque Joaquim Francisco Santana elaborou com tanto cuidado seu(s) Marco(s), que analisaremos em outro estudo – e também porque a tópica e o gênero do Marco permeiam outros esforços de monumentalização/ invenção da memória, como na proliferação de versões das pelejas de Romano e Inácio e Cabeceira e Caetano. Trata-se, com efeito, de um processo de luta simbólica que se relaciona a diversos posicionamentos e reações diante de uma vitória retumbante, embora tardia e terrivelmente sofrida, da população oprimida: a escravidão havia sido abolida, as instituições legais haviam mudado (conquanto não totalmente ou, poder-se-ia argumentar, muito pouco na prática). A (talvez impossível) história da recepção do(s) Marco(s) de Joaquim Francisco, e de todo o momento inicial do gênero da peleja e do próprio Marco, deve ser vista sob esse pano de fundo.
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Notas
(1) Dentre outros, L. Lewin, «Um conto de dois textos: oralidade, história oral e insulto poético em O Desafio de Romano e Inácio em Patos (1874)», em Conflitos, política e relações pessoais, ed.A. C. Marques, Fortaleza, UFCE / Campinas, Pontes Editores, 2007, p. 81-107; G. G. Gomes, «Insultos», «Elogios» e «Resistências»: participação de repentistas negros em cantorias do Nordeste (1870-1930), Mestrado em Historia, João Pessoa, Programa de Pós-Graduação em História do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFPB, 2012; F. Pereira dos Santos, «Cantoras e repentistas do século XIX: a construção de um território feminino» em Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasilia, 35, jan.-jun. de 2010, p. 222-235; L. A. Alves Santos, «Inácio da Catingueira: a construção de um personagem negro na historiografia da literatura de cordel brasileira» em Cadernos Imbondeiro, João Pessoa, v. 1, 1, 2010, p. 1-8.
(2) R. Terra, Memória de lutas: literatura de folhetos do Nordeste, São Paulo, Global, 1983, p. 65-66. Ver também J. P. Ferreira, Armadilhas da memória e outros ensaios, São Paulo, Ateliê, 2004, p. 151-152; e P. T. Iumatti, “Violência e criação: considerações sobre o Marco e o cangaço na literatura de folhetos brasileira entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX”, em M. L. Lobato y A. Bègue (eds), Literatura y música del hampa en los siglos de oro, Madri, Visor, 2014. Uma tentativa de proposição de definição e modelo de análise do marco foi feita recentemente, a partir de um ponto de vista formal e a-histórico (L. A. Alves Santos, «Marco: uma tradição que se refaz», em Boitatá, Londrina, n. 10, jul.-dez., 2010, p. 34-53 e «Marco: uma metodologia de análise», em Boitatá, Londrina, n. 11, jan.-jul. 2011, p. 1-15).
(3) “Um dos temas recorrentes nas sessões de cantoria refere-se a esses redutos imaginários que todo bom cantador elabora, lugares fantásticos e metafóricos, cercados de um terrível sistema defensivo para impedir qualquer assalto. Toda vez que um cantador expõe e descreve, com muitos detalhes, esse símbolo de sua invulnerabilidade poética, seu adversário desenvolve os recursos poético-guerreiros à sua disposição para aniquilar a obra do adversário. Esse reduto tem nomes diversos: castelo, fortaleza, marco ou obra. […]” I. M. F dos Santos, Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial, 2ª. Edição, Campinas, Editora da Unicamp, 2009, p. 117.
(4) J. P. Ferreira, op. cit., p. 151-152.
(5) Para uma discussão ver A. Almeida; J. A. Sobrinho (dir.), Marcos e vantagens, Campina Grande, UFPB, 1981, p. 11-17.
(6) “Estes cantadores apresentavam-se nas casas-grandes das fazendas ou em residências urbanas, em festejos privados ou em grandes festas públicas e feiras. Alguns permaneciam nos locais em que residiam – suas ‘ribeiras’ – aguardando a chegada de um oponente; outros percorriam o sertão, cantando versos próprios ou alheios, apresentando-se em duplas.[…]”, M. Abreu, Histórias de cordéis e folhetos, Campinas, Mecado de Letras / ALB, 2006, p. 75.
(7) Para uma discussão recente do conceito, ver Beatriz de Miranda Brusantin, Capitães e Mateus: relações sociais, culturas festivas e de luta dos trabalhadores dos engenhos da mata norte de Pernambuco (Comarca de Nazareth 1870-1888), 2011, Tese de Doutorado (História), Campinas, IFCH – Unicamp, 2011. Ver também Ana Paula da Cruz Pereira de Moraes, Em busca da liberdade: os escravos no sertão do Rio Piranhas, 1700-1750, Campina Grande, UFCG, 2009; G. G. Gomes, op. cit.; João José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil oitocentista, São Paulo, Cia. das Letras, 1989, p. 48; p. 71-72; p. 78.
(8) Sobre a peleja ver, dentre outros, C. Cascudo, Vaqueiros e cantadores, Belo Horizonte, Itatiaia / São Paulo, Edusp, 1984; O. Lessa, Inácio da Catingueira e Luís Gama – dois poetas negros contra o racismo dos mestiços, Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1982; L. Lewin, op. cit.; I. M. F. dos Santos, op. cit., p. 117-118.
(9) Rodrigues de Carvalho, Cancioneiro do Norte (3ª ed.), Instituto Nacional do Livro, 1967,p. 259-260; na primeira edição, p. 144.
(10) Ibidem (1ª ed.), p. 179-181.
(11) Com efeito, na versão de Francisco das Chagas Batista, transcrita por O. Lessa, uma grande questão abordada, além da “ciência”, determinante para a suposta vitória de Romano, é a do embate entre os “domínios poéticos” dos cantadores – em termos semelhantes aos de Rodrigues de Carvalho: “R – Inácio, a tua fama / é só lá na Catingueira, / para o Saco da Mãe-D’Água, / tu não sobes a ladeira: / juro com todos dez dedos / que tu não vais ao Teixeira […] I. - Meu branco, eu dou-lhe um conselho / se voimincé me atende: / se for para nós brincarmos / pode ir que não me ofende, / mas para tomar a Catingueira / Não vá que se arrepende” (apud O. Lessa, op. cit., p. 51).
(12) Apud Lessa, Ibidem, p. 40.
(14) Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino (2ª ed.), Rio de Janeiro, José Olympio, 1972, p. 150-155.
(15) “[…] Mas se o senhor permitia que os escravos fossem aos fins de suas terras fazer algum tipo de delimitação levantar um cercado de pedra, por exemplo, ele sabia que o negro poderia fugir”, citado por G. G. Gomes, op. cit., p. 112; Ana Paula da Cruz Pereira de Moraes, Em busca da Liberdade: os escravos no sertão do Rio Piranhas, 1700-1750, Campina Grande, UFCG, 2009.
(16) Ver também P. T. Iumatti, art. cit.; P. T. Iumatti, “Vozes negras na cantoria: o caso de Severino Perigo (1870-1925)”, Literatura e Sociedade (USP), v. 19, p. 100-116, 2014.
(17) E. Travassos, “Ethics in the sung duels of north-eastern Brazil: collective memory and contemporary practice”, British Journal of Ethnomusicology, v. 9/1, 2000, p. 86.
(18) P. T. Iumatti, “Vozes negras na cantoria: o caso de Severino Perigo (1870-1925)”, art. cit., p. 100-116.
(19) A. Almeida e J. A. Sobrinho, Marcos e vantagens, op. cit., p. 46; 17 fragmentos e versões do desafio de Chica Barrosa com Neco Martins podem ser encontrados em Rodrigues de Carvalho, Leonardo Mota etc. Além disso, foram recentemente publicados, pela editora Hedra, tanto o desafio como o “Marco da Divisão para os Cantadores do Norte”. In: N. Martins, Cordel – Neco Martins, São Paulo, Hedra, 2010, p. 35-104. Sobre Neco Martins, vide a Introdução a esse volume, por Gilmar de Carvalho (p. 9-33). Sobre Chica Barrosa, ver I. Medeiros, Chica Barrosa: a rainha negra do repente, João Pessoa, Ideia, 2009. Bem como os trabalhos da pesquisadora Francisca Pereira dos Santos.
(20) Rodrigues de Carvalho, Cancioneiro do Norte (1a ed.), op. cit., p. 179-181.
(22) Batista, Cantadores e poetas populares, João Pessoa, Editora Universitaria UFPB /conselho estadual de cultura, 1997 [1929], p. 84.
(23) Rodrigues de Carvalho, Cancioneiro do Norte (1a ed.), op. cit., p. 167.
(25) Batista, op. cit., p. 85.
(26) Rodrigues de Carvalho, op. cit., p. 170-171.
(28) Batista, op. cit., p. 84.
(29) Rodrigues de Carvalho, op. cit., p. 170-171.
(30) Ver R. Terra, op. cit., p. 43.
(31) Batista, op. cit., p. 90.
(32) Apud Batista, ibid., p. 86.
(33) Apud Batista, op. cit., p. 87. Segundo Chagas Batista, findo esse combate, os dois cantadores teriam se olhado e compreendido que ambos eram “bons repentistas e tinham coragem igual”. Então, “apertaram-se as mãos e se tornaram bons camaradas. Cantaram juntos diversas outras vezes, mas nunca em desafio.”
(34) C. Cascudo, Vaqueiros e cantadores, op. cit. [1939], p. 198-199. Chagas Batista, op. cit., p. 87-88. Todavia, em Chagas Batista a segunda dessas estrofes corresponde à fala (“desmancha”) de Cabeceira – o que Cascudo suprimiu.
(35) Batista, op. cit., prefácio.
(36) P.T. Iumatti, “Vozes negras na cantoria: o caso de Severino Perigo”, art. cit.
(37) J. F. Santana, “A defesa da lagoa” apud F. C. Batista, Cantadores e poetas populares, João Pessoa, Editora Universitaria UFPB /conselho estadual de cultura, 1997, p. 130-135; Santana, “A fortaleza que levantei dentro de uma lagoa” apud A. Almeida e J. A. Sobrinho, Marcos e vantagens, op. cit., p. 35-40. Ver a transcrição de “A defesa da lagoa”, tal e qual a versão publicada por F. C. Batista, Ibidem, p. 41-45.
(38) Todavia, para Câmara Cascudo Joaquim Francisco teria nascido e morrido em Camutanga. C. Cascudo, Vaqueiros e cantadores, op. cit., p. 312.
(39) Ver A. Almeida e J. A. Sobrinho, Dicionário Bio-bibliográfico…, op. cit., p. 243.
(40) Com efeito, há a notícia de um duelo seu em 1908 em Itabaiana, Paraíba, na fronteira com Pernambuco, nas proximidades de Camutanga, com o cantador Antônio da Cruz. “Uma surra que Antonio da Cruz levou do negro Joaquim Francisco em 1908 na cidade de Itabaiana”. Citado por A. Almeida e J. A. Sobrinho, Dicionário Bio-bibliográfico…, op. cit., p. 243.
(41) F. C. Batista, Cantadores e poetas populares, op. cit., 1997, p. 130.
(42) A. Almeida e J. A. Sobrinho, Dicionário bio-bibliográfico…, op. cit., p. 243.Câmara Cascudo, por sua vez, descreve Joaquim Francisco Santana como “negro, forte e cantador valioso, inspirado e de respostas felizes”, C. Cascudo, op. cit., p. 312.
(43) Assim, nessa peleja os cantadores debatem ciência, mitologia, matemática etc. As temáticas pagãs têm como corolário o fato de a vitória de Joaquim Francisco ser determinada por sua proposição de cantar na “língua d’Angola”. Dessa forma, Antonio da Cruz afirma a superioridade de Sem Fim em um código altamente desvalorizado no espaço da cantoria e do cordel – reforçando-se, dessarte, os estereótipos relativos aos afro-descendentes. A vitória de Sem Fim não é, portanto, no folheto, uma “verdadeira” vitória – o que provavelmente foi uma estratégia de Antonio da Cruz para lidar com sua derrota em um “duelo real”. Antonio da Cruz entrava, pois, com a publicação desse folheto – que de fato teve várias reedições –, em um terreno de disputas pela memória a nosso ver bastante característico do gênero da peleja. Ver Antonio da Cruz, “Uma surra que Antonio da Cruz levou do negro Joaquim Francisco em 1908 na cidade de Itabayana”, Guarabira, 1950, Biblioteca Átila Almeida, UEPB, AA6201.
É de se notar também que, se Francisco das Chagas Batista dá destaque ao Marco “A defesa da lagoa”, (supostamente) de autoria de Joaquim Francisco Santana, ao reproduzi-lo em sua coletânea Cantadores e poetas populares, é por outro lado igualmente significativo que, no mesmo livro, dê no mínimo igual relevo ao cantador Antonio da Cruz, a quem dedica um de seus capítulos ou verbetes – não fazendo menção, porém, a seu embate com Joaquim Francisco. Tal embate, todavia, resulta ficar, com tal silêncio, ainda mais saliente, já que Batista parece, ao ignorá-lo, estabelecer uma espécie de compensação para a transcrição do Marco de Joaquim Francisco. Isto porque o texto que cita de Antonio da Cruz pode talvez ser lido como uma espécie de “anti-marco”, narrando a história dos sonhos de grandeza (lembre-se da centralidade das hipérboles no Marco) de um charlatão que explora a credulidade do povo para angariar dinheiro a fim de construir uma máquina que reproduziria o “eixo do mundo” (imagem próxima do universo das cantorias e, particularmente, dos Marcos). Neste poema, grande ênfase é dada à temeridade dos sonhos sem limite, sem fim – que teriam feito com que o próprio anjo Luzbel fosse “terminar no inferno”. Ver Chagas Batista, 1929, op. cit., p. 218.
(44) “Senhor dono da casa, dê licença / Para eu dar neste negro em seu salão / Fazer elle beijar a minha mão, / Ajoelhar-se a meus pés, tomar-me a bençam. […]”, G. Barroso, Ao som da viola, Rio de Janeiro, Livraria Editora Leite Ribeiro, 1921, p. 570.
(45) Apud G. Barroso, Ibidem, p. 573. Também nos versos citados por Câmara Cascudo, constata-se a utilização da mesma estratégia, relacionada, além disso, à refutação de um cantador que se apresenta como “condor”, “monarca” etc.: “És Francisco, eu sou Claudino, / faço medo a cantador / que só boi brabo a moleque; / nesta terra sou condor, / e mais além sou monarca, / sou grande como Petrarca, / tenho dos reis o valor… // Tudo isso é ninharia… / Se és Claudino, eu sou Francisco / Dou choque nos cantadores / como o trovão e o curisco. / Embora seja o Demônio / não entra em meu patrimônio… / onde vive um tigre arisco…”, Câmara Cascudo, Vaqueiros e cantadores, op. cit., p. 223.
(47)“Peleja de Joaquim Francisco com o Demônio”, Popular Editora, s. d. Biblioteca Átila Almeida, UEPB, AA6321. Em outra peleja – a de Francisco Sales com o “Negro Visão” – escrita pelo próprio Francisco Sales Areda, o Diabo, aqui já travestido, novamente, de negro, evoca em um momento a célebre peleja: “N.: - Você já vem com parolas / como fez Joaquim Sem Fim / botando santo no meio / e me chamando ruim / fazendo a mesma besteira / para ver se ataca a mim.”, F. S. Areda, A malassombrada peleja de Francisco Sales com o Negro Visão, Editor Prof. João José da Silva, s. d., p. 5, Acervo Raymond Cantel, FRC3635-0007, CRLA-Archivos, Universidade de Poitiers.
(48) C. Cascudo, op. cit., p. 312.
(49) “Em seus aspectos textuais, essa peleja, diferentemente das demais, é considerada longa. Composta por 29 páginas (geralmente as composições têm apenas oito folhas), materializa o talento dos cantadores, difíceis de serem vencidos. Apenas na 21ª página é que o Diabo confirma sua identidade. A partir disso é que Joaquim consegue apresentar alguma vantagem na peleja. Sabendo de quem é seu adversário, passa a invocar santos e a Jesus Cristo. Por isso, embora com algumas diferenças, esta peleja termina como as demais discussões, Joaquim Francisco triunfa apenas porque mostra-se crente a Jesus e outros santos. De modo que, torna-se evidente que o homem sozinho não é capaz de livrar-se do poder do Adversário. Assim, a face do demiurgo, embora vencido, afasta-se daquela verificável na maioria dos pactos. O Diabo não está em igualdade à criatura humana. Esta é vulnerável e necessita da interseção da divindade e santidade para poder livrar-se do Inimigo.” Estela Ramos de Souza de Oliveira, op. cit., p. 83. A autora apresenta a peleja como de autoria de Antonio Teixeira da Cruz.
(51)“Peleja de Joaquim Francisco e José Claudino”, Fundo Villa-Lobos, caixa 6, pasta 17, Arquivo Mário de Andrade, IEB-USP.
(53) “Peleja de Joaquim Francisco com o Demônio”, Popular Editora, s. d., p. 17-18. Biblioteca Átila Almeida, UEPB, AA6321. Grifo meu.
(54) O Marco como gênero retinha o significado da palavra marco como limite, transfigurando-se embora numa espécie de limite a partir do qual podiam perder-se todos os limites. Ver P. T., Iumatti, P. “Violência e criação”, art. cit.
(55) P. T. Iumatti, “Vozes negras na cantoria: o caso de Severino Perigo”, art. cit.
(56) “J – Isto é conversa fiada / Veja que eu sou topetudo! / Sacudo pau pela cara, / com galhos, raiz e tudo, / Mato, esfolo, faço manta / e dependuro a garganta / na ponta do meu escudo”, “Peleja de Joaquim Francisco e José Claudino”, op. cit. Essa estrofe foi citada por C. Cascudo, op. cit., p. 223. Apesar disso, é interessante que também se possa constatar, nas coletâneas dos folcloristas, o cantador ou personagem Joaquim Francisco por vezes rebatendo insultos racistas com versos de grande elegância: “J. — Não falle de minha côr / Que você tem a sua amarelaça. / É branco, porém tem a desgraça / De ser sem respeito e adulador. / E’ chaleira, seja de quem for, / Atraz de ganhar algum bocado, / Um tostão p’ra viver encaxaçado, / Envergonhando a todo o povo seu / Que antes ser negro como eu, / Que um branco, assim, tão relaxado!”, “Martelo de Joaquim Francisco com Antônio da Cruz” apud G. Barroso, Ao som da viola, op. cit., p. 572. Não nos parece ser por acaso que, em Gustavo Barroso, a transcrição desse “Martelo” seja seguida por uma “Silva de cantigas soltas de desafio”, na qual, logo na terceira estrofe, verifica-se a presença do Marco: “Eu infinquei o meu marco / Da Gangorra p’ra Poção, / Para os cabras saberem / Qual a minha divisão…”, G. Barroso, op. cit., p. 575.
(57) “Uma segunda inferência é a confirmação de que, em alguns momentos, os brancos não eram fortes o suficiente para destruírem o quilombo; daí então surgia um modus vivendi que uma ocasião permitiu a Pataca exercer o ofício, de fato, se não de direito, de juiz de paz. Atitude que tem um enorme valor simbólico, pois representava o exercício da autoridade branca por parte de um quilombola.”, M. J. Carvalho, “O quilombo de Malunguinho, rei das matas de Pernambuco” em Reis e Gomes (Orgs.), Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil, São Paulo, Cia das Letras, 1996, p. 427. Além disso, note-se que o autor vê, em seu artigo, um processo de monumentalização, de divinização do Malunguinho no culto da Jurema Sagrada: “O Malunguinho da Jurema, que tem o poder de tirar os estrepes do caminho, é, portanto, a recriação simbólica do próprio Malunguinho do Catucá: o verdadeiro rei das matas de Pernambuco.”, Ibid., p. 428.
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